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#Música#Literatura#Memória|Zeh Gustavo|12 Abr 2021

SÉRGIO RICARDO: A TOADA FIRME DE QUEM SABE O MAR

Homem não chora
Por fim de glória
Dá seu recado
Enquanto durar sua história
(Sérgio Ricardo, em “Beto Bom de Bola”)

 

A subida pela Presidente João Goulart já me pega animado; afoito, até. Encontrar Sérgio Ricardo me põe na condição de um menino prestes a abraçar seu ídolo do futebol. Sérgio é o craque; eu, o menino. Nem mais com tanto fôlego, porém menino. Já Sérgio Ricardo, multiartista talhado por seus sonhos, mestre e maestro generoso, está sempre disposto. É um homem vívido, agitado, de olhar em riste, afiado na afinação de sua busca, num aguçamento de quem não pede nem perde caminho, simplesmente passa, fincando seu rastro no rasgo dos dias, plantando sua marca. 

“Tudo no mundo tem cor” é título de uma de suas canções, composta para a trilha de “Flicts”, livro homônimo de Ziraldo. A sutileza é que Quase tudo tem seu tom”, como recomenda outro verso. Sérgio Ricardo tem cor e tom, próprios. E pratica sua arte despida de enfeite ou glamourzinho besta, sem dispor necessariamente de embalagem para o produto genuíno de seu ofício e missão de criador. Muito de sua obra está no ar, coisa inédita: palavras que parecem sons, telas que discursam o nu do humano que engendram, músicas que se fazem cenas. Sérgio Ricardo vai assim, no risco da faca de seu “verso brejeiro”, capaz de rimar “(...) no chão da senzala / quilombo com cativeiro” (de “Ponto de Partida”). Olerê, olará. Desce para me receber. 

– Ô, Zeh, finalmente!

Afetuoso, como sempre, refere-se à demora de um reencontro prometido, ansiado, entre novos velhos amigos, parças, camaradinhas. Descubro logo que o menino ali é outro, me sinto até caduco, ao levar com tanto peso, no dorso, alguns de meus desenganos e cansaços. Sérgio se escora ágil para subir os dois andares do edifício sem elevador, no Vidigal que escolheu para habitar e habitá-lo. Aos 82, trata-se de um homem que não para no tempo. Nem parece senti-lo. Ainda que me tente desmentir – volta e meia reclama do cigarro que não abandona e que o faz arfar nas caminhadas, idas e vindas pelo bairro-morada. O álcool, largou – parte por trauma do tempo em que tocava em piano-bar, aturando bebum. 

Paulista de Marília, Sérgio começou sua vida profissional cedo, nas rádios. Ainda assinava João Lutfi, seu nome de batismo. Operava, locutava, mexia nas internas dos sons que viriam a formar sua larga escola de música e de vida. Ao longo de sua trajetória, bebeu com avidez de ensinamentos de métodos de harmonia, composição, contraponto com mestres do quilate de Moacir Santos e Guerra-Peixe, entre outros. Com vinte e poucos anos, pelos 1950, já era pianista muito requisitado nas boates de Rio e São Paulo. Foi na noite que mostrou, por exemplo, “Bouquet de Isabel”, gravada pela cantora Maysa. Isabel, aquela que

Toda vez que uma amiga casava, 
comprava um vestido
Se empoava pra ver
Se arranjava também casamento
Porque era um tormento
Viver sem ninguém.

Sujeito boa-pinta, com sua voz grave que se imposta e seduz sem forçar, já desenvolto pela atividade de interpretação musical, Sérgio passa em teste para ator: era um emprego fixo na tevê e rádio Difusora de São Paulo. A condição? Mudar sua assinatura autoral: de João Lutfi para Sérgio Ricardo. O nome pegou, embora Sérgio decidisse, tempinho depois, abandonar o conforto da posição de galã para retornar à noite, à lida mais inconstante. Sérgio Ricardo, o inacomodável.

– Cachorrinha sem vergonha!

É Docinho que vem flanar serelepe junto de seu cuidador. Companheira, desta fase da vida. Após o fim do quinto casamento, Sérgio Ricardo está solteiro novamente. Vive no apartamento do Vidigal com João, o filho mais jovem, também músico e ator de talento – em 2012 e 2013 João estrelou, com o Nós do Morro, uma versão primorosa do musical “Bandeira de Retalhos”. A peça, escrita e musicada por Sérgio Ricardo, retrata com poesia o verídico episódio de luta dos moradores do Vidigal, que, em 1976, organizados e com a ajuda do próprio Sérgio, conseguem impedir, em plena Ditadura Militar, um processo já instaurado de remoção das pessoas e derrubada dos barracos. Quem perdeu o seu pra milicância, o reergueu. Com a solidariedade dos demais. Diz Sérgio em “Som e verso Severino”, que está na trilha do espetáculo:

Quando a gente se junta, transforma
o mal que transtorna
o nosso viver
no mais belo amor que se trama
com o fio do drama
de um bem que se quer.

Seguimos direto para o seu ateliê. A vista é generosa, para o mar e avante, dista bem o infinito que os olhos de Sérgio Ricardo enxergam, lentes de quem viveu facetas múltiplas e não se curvou. Ao contrário, ousou, indomesticável. Nas tantas em que o tentaram calar, Sérgio gritou e pôs pra quebrar. No silêncio, prosseguiu (“Na relação dos desertos / Eu cravo a minha insistência” são versos de “Semente”). A palavra de Sérgio Ricardo não morre entre os dentes, nem esmorece ante qualquer vantagem da ocasião. Possui e oferta “gemidos e preces / rompantes e contratempos” (também de “Ponto de Partida”).

No final dos anos 1950, de volta ao Rio após uma de suas constantes temporadas em São Paulo, conhece João Gilberto e a Bossa Nova e lança seus primeiros LPs, “Dançante n. 1” e “A bossa romântica de Sérgio Ricardo”. Avança os anos 1960 como uma sensação. Toca nas rádios, atua e dirige na televisão, faz shows por todo o Brasil e roda seu filme de estreia, o curta em 35 mm “Menino da Calça Branca”, com seu irmão Dib Lutfi na fotografia e Nelson Pereira dos Santos na montagem. Compõe a trilha de “Deus e o Diabo na Terra só Sol”, primeira das tantas parcerias com Glauber Rocha.

– Ele me dava parte do roteiro, eu musicava. O trecho entrava só cantado. Glauber me pedia para imitar a voz do feirante. 

Do brado janguista por reforma agrária ao bardo que defende seu caixote no meio urbano; do retrato humanista de personagens ditos broncos ao brando tom em que enleva as musas de suas canções de amor; da Bossa Nova ao Cinema Novo; da boêmia noturna ao celebrizar (e esquecer) quase instantâneo do rádio e da tevê, lá estava Sérgio Ricardo, seu verso, seu violão, sua visão de arte e de mundo que “Zelão”, desta época, traduz tão bem: 

Todo o morro entendeu
Quando o Zelão chorou
Ninguém riu nem brincou
E era carnaval

No fogo de um barracão
Só se cozinha ilusão
Restos que a feira deixou
E ainda é pouco só

Mas assim mesmo Zelão
Dizia sempre a sorrir
Que um pobre ajuda outro pobre
Até melhorar

(...)

Arte, mas com consciência política do papel do artista (e do homem) no mundo. Sérgio não abdicou desse papel. Tampouco relegou o primor estético, o lírico que exige a arte, a um lugar de inconveniência. Nisto, equilibrou; resolveu com graça e raça essa pendenga que é o fazer arte com engajamento, ciente e propagador da ideia de “Que assim mal dividido / Esse mundo anda errado” (de “O sertão vai virar mar”, composta com Glauber para “Deus e o Diabo na Terra do Sol”). 

 

***

 

Medo que se alastra não arrasta o cabra Sérgio Ricardo pelas garras sombrias de seus cabrestos. Seu primeiro longa, “Esse mundo é meu”, com montagem de Ruy Guerra, com quem compôs a canção homônima, por ironia de um destino ingrato entra em cartaz no Primeiro de Abril cujos 50 anos foram “descomemorados” recentemente. Não era mentira: neste dia que iria durar 21 anos, o cinema está vazio, assim como as ruas. Advém um tempo de silêncio, censura. E de partir pro exílio – ou pra briga. Sérgio opta pela última: junta-se à resistência organizada; milita no Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE; não se esconde jamais. Mantém intensa atividade, no bojo de seu pensamento libertário, seu viço transformador, sua arte que não se abate diante das injustiças e desmandos. Seu cancioneiro é posto ao sabor da luta, qual cangaceiro cujos olhos já abortaram o medo. Seus shows agora são movimentos; sua palavra, bandeira, como em “Calabouço”, onde um mantra do poderio alucinado pelo autoritarismo (“Cala a boca, moço!”) é desafiado pelo cantador.

Olho aberto, ouvido atento
E a cabeça no lugar
Cala a boca, moço, cala a boca, moço
Do canto da boca escorre
Metade do meu cantar
Cala a boca, moço, cala a boca, moço
(...)
Fala!

Olha o vazio nas almas
Olha um brasileiro de alma vazia

Em 1967, apresenta, no Festival da Record, uma ode a Garrincha. Seu samba “Beto Bom de Bola” é interrompido pelas vaias (e também os urros e aplausos!) do público. Sérgio se irrita (“Vocês ganharam! Vocês ganharam!”), quebra o violão e o atira na plateia. 

– Se fosse hoje, quebrava um cavaquinho...

Um parêntesis: o gesto de Sérgio Ricardo, em si; e seus contornos e entornos representam a alma de uma época. Trata-se de um público ativo, consciente, atencioso e visceral, aquele presente no Festival, que reúne artistas próximos, não celebridades distantes. A cobertura jornalística não é pasteurizada, se preenche, sincera, da informalidade em voga. Um ambiente de gente viva, portanto. Parêntesis fechado, texto que segue.

No Festival seguinte, as pazes com a plateia, que canta o trecho de “Dia de Graça” que a Ditadura impede Sérgio de entoar. A música continua. Sérgio sofre censura, tem discos apreendidos. Não cansa. É constantemente aconselhado a se mandar. Fica. E paga o preço. Inicia-se, ainda na década de 1970, um processo de tentativa de apagamento de sua obra e voz, semelhante ao ocorrido com seu companheiro de estrada Geraldo Vandré. Soma-se à perseguição política a institucionalização de uma maquinaria perversa: a indústria musical impõe um refinado esquema de exclusão e autocensura nas gravadoras, tevês e rádios, todos comprometidos, a partir de então, quase que unicamente com a causa mesquinha de alcançar o lucro imediato e fácil. O resultado todos conhecemos: um empobrecimento geral da qualidade do que é veiculado.

– Nossa arte hoje está perdida em um labirinto, sem recursos para a produção das obras recusadas pelo sistema, que privilegia o panelismo, com raríssimas exceções – aponta o autor de “Tocaia” no blog do G.R.I.T.A (Grupo de Resistência às Irregularidades no Terreno das Artes), movimento que criou, em 2011... – Para acordar o artista brasileiro! – emenda.

Sérgio passa um café. Lamenta não ter nenhuma birita para me oferecer. Lembra que protagonizou, com outros artistas, a luta corporativa pela criação do Ecad, que na época revolucionou a forma de arrecadação e distribuição de direitos autorais. Como tudo, o órgão se oficializou. Caducou. Já o olor do café é do bom, daquele passado forte. 

– Melhor, que dou uma pausa nos gorós. 

Jogo essa, meio incrédulo de minha falácia de alcoólico provisoriamente enrustido. Comemos um bolo de laranja e vamos ver umas telas de Sérgio, no computador (ele aderiu bravamente à cultura digital!), onde em geral concebe os primeiros traços de suas pinturas atuais. Muitos seios, imagens sinuosas. Sérgio é um romântico de bossa, que cultua a figura feminina. Coisas meio fora de moda hoje em dia, na era dos emos, dos nulos e seus muros, e de uma arte em geral ímpia, oca, improfunda. Sérgio é dos que não perdem o tesão, jamais. O tesão talvez ausente nas últimas gerações, que parecem enfastiadas pelos prazeres de fácil acesso, logo consumidos e descartados, de uma vida sem paixões. Ante meu pessimismo, Sérgio prefere enxergar o que anda, é provável, submerso pelas sombras do tempo presente.

– Tem muita gente boa sufocada por aí...

Concordo e me sirvo mais um pouco do café. Pensamos e fazemos planos de reeditar, agora na rádio, e juntos, o projeto Palco Livre, que Sérgio concebeu e tocou, para revelar novos talentos, em Niterói, nos anos 2000. Eu pulei as décadas de 1980 e 1990? Não, não, Sérgio não parou. Gravou com seu camarada Vandré, lançou o livro de poemas “Elo Ela” (Civilização Brasileira, 1982), fez shows, realizou filmes. Teve até Semana Sérgio Ricardo, no CCBB, com exibição de filmes, mostra de livros e pinturas, debates sobre sua obra e o próprio Sérgio Ricardo in concert, no formato voz e violão. Mas ainda tô pulando muita coisa, como já o tinha feito no relato dobre as décadas de constituição e afirmação de sua obra-vida, e faço isso assumidamente de maneira aleatória. Esta biocrônica-perfil de Sérgio Ricardo é pessoal, emotiva e intransferível, fazer o quê!

Anoitece e falamos um pouco de saudade. Do tempo, que nos vive. De no que tá dando a esquerda ou o que dela restou: dos fragmentos e cacos de vidro espalhados pelo chão dos dias. Digo a ele do quanto emociona, quão digna e singela é sua “Contra a maré”, uma declaração fuderosa de princípios, sem remorsos nem autocomiseração:

Não tenho mágoas
Não precisa vir me consolar
Mágoas são águas
Vão para o mar
Trago lembranças
E essas eu não posso apagar
São a herança
Do meu caminhar
Se assim não fosse
Eu havia de ser um poço
Estaria que só caroço
Tropeço na ponta do pé
Quem vai pro fundo
Tem é que agitar o braço
Tem é que apertar o passo
Tem é que remar contra a maré 

– E a literatura, Zeh?

Agora é Sérgio que me indaga. Falo de minha “Pedagogia do Suprimido”. Ele gosta da expressão: suprimido. Diz que assim se sente – mesmo sem as mágoas que correram para o mar. Lemos um pouco, no entanto, é de seu livro, inédito, de poemas: “Canção calada”. Me admiro da força cortante de seus versos, tão densos; me rio por dentro, da satisfação que causa a genuína e única disposição de suas rimas. É livro, pois, de sábio cantador, tipo o de sua “Canção do Espantalho”, que reivindica:

Quero um cantinho nessa feira
Prá eu cantar a minha gente
Gente que não foge da terra
Gente que não foge da guerra
De arruaça, o que vier 

(…)

 

Tipo Sérgio. Briseado pelo vento do mar, do seu saveiro no Vidigal, Sérgio Ricardo segue a manobrar. 

O QUE SEI 

Não sei julgar quem parte na derrota
nem sei seguir o bloco que ficou
Colho a memória solta à minha volta
e faço um samba com o que sobrou

(Poema do livro inédito “Canção Calada”)

 

Não vai parar nunca (“– Pois eu lhe digo seu moço / posso até ficar no osso / mas não me dou por finado”, diz seu personagem João do Fole em outro poema do livro, “Papo na birosca”). Gênio que não deserta de suas aptidões e destinamento, tampouco de suas convicções e caráter, Sérgio Ricardo não cansa de escapar das tocaias do tempo e da história, de driblar as cretinagens do meio midiático e das indústrias da arte para fazer valer a luz de sua trajetória. Toca o barco, contra a maré. Pinta, escreve, compõe, se mexe e semeia sonhos de uma outra melodia-mundo, por construir.

Os olhos deste velho menino-escriba marejam, ao dar o putabraço de até-breve nesse artesão arteiro, profícuo, que cria empolgado mesmo quando deprime diante do que o oprime. Sérgio Ricardo é o grito da poesia no poço de mal estar e pouco ser em que nos enfiaram, é o peito aberto contra o vazio nas almas que ele denunciara estar a germinar, há tantos anos.

– Vê se não some, Zeh.

Sumo não, camarada Sérgio. Corro, que lá vem pedra, e mundo, nosso, ainda oferta muita queixa, muita brecha, muita deixa para com amor ao leme se navegar. Mandinga da gente continua, em busca da beira de outro melhor cais.

 

_

Zeh Gustavo é músico, escritor e revisor. Mexe com poesia, canto, letra, conto. Fez uma breve incursão pela filosofia política com um mestrado que relacionou o tema da vida outra de Foucault ao escritor da marginália Antônio Fraga. Na música faz parte, como cantador, de grupos como o Terreiro de Breque e já passou também por Cordão do Prata Preta, Samba da Saúde e Banda da Conceição. Há, no prelo, o disco Raiz e folha: o cancioneiro de Zeh Gustavo, gravado pela cantora baiana Kell Santos; e a coletânea poética Jumento com Faixa: deboches e antiodes ao fascismo, do qual Zeh é um dos organizadores e autores. Em 2019, lançou o livro de poesias Contrarresiliente. Na literatura, publicou, ainda, Eu algum na multidão de motocicletas verdes agonizantes (Viés, 2018; vencedor do Prêmio Lima Barreto de Contos da Academia Carioca de Letras), Pedagogia do suprimido (Verve, 2013; Autografia, 2015), A perspectiva do quase (Arte Paubrasil, 2008) e Idade do Zero (Escrituras, 2005). Participou, entre outras, das coletâneas Porremas (Mórula, 2018), Para ler o samba (Ímã, 2016), O meu lugar (Mórula, 2015), Rio de Janeiro: alguns de seus gênios e muitos delírios (Autografia, 2015), Porto do Rio do início ao fim (Rovelle, 2012). Foi um dos organizadores do FIM (Fim de Semana do Livro no Porto).


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