O livro "Canção Calada" foi publicado em 2019, um ano antes de Sérgio Ricardo nos deixar, em 2020. Esta obra literária, portanto, é a última publicada pelo autor em vida. Os poemas que a compõem não foram escritos agora. São poemas que datam de algum tempo e que aguardavam pela oportunidade da publicação.
Alguns poemas são letras de músicas que compuseram a trilha sonora de seus últimos filmes, obras que o autor foi escrevendo ao longo de anos. Nada foi pensado agora, especificamente para essa publicação, o que poderia fazer supor que o poeta, maduro, experiente, tendo-se embrenhado pelas mais diversas formas de expressão artística, parasse para fazer um balanço de sua vida.
Não, muitos dos poemas já passearam pelas redes sociais, foram lidos, comentados entre seus seguidores, inclusive com a participação do próprio autor nos comentários. Mas desde seu embrião, Sérgio Ricardo organizou os poemas pensando em uma certa cronologia de suas experiências de vida, da formação de uma consciência social do jovem, o qual olha de forma crítica para a estrutura social, os privilégios das classes abastadas, a ausência do poder público - que deveria minimizar o sofrimento dos moradores das comunidades carentes do Rio de Janeiro - da atitude do adulto diante de um regime ditatorial de direita. Desde a origem, Sérgio Ricardo deu à obra essa espécie de cronologia de sua própria vida.
Na primeira vez em que tive contato com a obra, creio que em fins de 2017, o livro dividia-se em cinco partes. Depois, retomado pelo próprio autor, ficou dividido em três partes e finalmente, para a publicação, acabou por transformar-se em um corpo único, o que não alterou a ordem dos poemas.
O livro é uma viagem pela vida e experiências do autor. Começa antes mesmo de ele existir, evocando a aldeia na Síria de onde é originário seu pai, onde chegou a ir e rodar um curta metragem que, por circunstâncias alheias à sua vontade, acabou-se perdendo. Trata-se do poema "Pássaro da Aldeia" (mesmo título do filme desaparecido).
Depois de revisitar a aldeia paterna, o autor volta a sua infância na cidade de Marília, em São Paulo, uma pequena cidade agrícola que crescia juntamente com nosso jovem João Lutfi (nome de certidão de Sérgio Ricardo). A liberdade do menino, alguns tipos locais, o primeiro amor e ainda o folgar do jovem adolescente podem ser lidos nos primeiros poemas. Destaco: "Marília", "Realejo", "Barbozinha", "Na sola dos meus sapatos", poemas com o sabor da infância e da liberdade que oferece a cidade pequena.
Em meio a essas lembranças de infância e adolescência, alguns acontecimentos atuais também são inseridos na obra, como o poema "Cartilha do sistema", escrito diante de um trágico acidente ocorrido em uma Boate repleta de jovens, com mais de duzentas pessoas mortas, no Rio Grande do Sul, em 2013.
Poema após poema vemos a consciência social do jovem elaborar-se e começamos a ver suas preocupações sociais irem ganhando espaço.
O amor - pedra de toque de toda a obra - apresenta-se em todas as suas formas: amor aos filhos, no delicado e conciso poema de apenas seis versos, em que expressa o tamanho de seu sentimento por eles e, ao mesmo tempo, a tristeza de vê-los, já adultos, tornarem-se independentes e donos de suas próprias vidas. Trata-se do poema "O riso e o pranto".
Tema também presente é o da solidão, que encontramos em poemas como "Mergulho", "Momento", "Partidas", "O aplauso", ou solidão ainda mais profunda, que é a do homem sentindo-se inteiramente abandonado, trocado por um filho que sequer nasceu. O eu-poético observando a mulher grávida, deitada, toda ela concentrada em sua barriga, naquele feto com o qual só ela pode ter tal intimidade, enquanto o homem sente o total abandono a que é relegado, mas em um instante mágico, o feto agita-se « De um jeito tão solidário » e vem tirar o poeta de seu sofrimento. Poema "Noite fria".
Musicista desde sua infância, é evidente que a música não poderia estar ausente da obra. Esteve sempre rodeado de músicos, sendo um crítico da condição da música e do músico brasileiros. A música era algo essencial em sua vida e, consequentemente, em sua obra, vista ainda com o olhar do músico, do crítico, do homem preocupado com os caminhos da música em nosso país e com o futuro dos músicos; ou simplesmente deixar-se levar por um batuque na favela. Citemos, entre tantos outros poemas, "Samba ou delírio"; "Se a lua nos trouxess Johnny Alf"; "À margem", "O canto", "Deu briga no samba", e tantos, tantos outros poemas que têm a música como tema ou como motivo.
Sua consciência política, a defesa do mais fraco, a dor pelo oprimido, percorrem a obra, tornando-se cada vez mais constantes, bem como suas convicções políticas, os poemas "O golpe de 1964" ou "Lamarca em fuga" são exemplos desse estar sempre presente e consciente dos problemas políticos. Aqui já temos o adulto vivendo uma ditadura e tomando uma posição.
Como em sua vida, onde essa consciência política e social cresceu com o amadurecimento de Sérgio Ricardo, assim na obra ela vai crescendo e deixando claro de que lado está o poeta: o dos oprimidos, dos pobres, daqueles que se tornam invisíveis aos olhos da população abastada. Podemos constatar isso em "Poema de fala perdida"; "Sem crer não há", "O olhar da menina Kaiowa", "Fantasma preto", "A luz da estrada", "Clamor na festa de casa grande". Esses são alguns dos muitos poemas que refletem as preocupações sociais do autor.
Sérgio Ricardo é um artista em quem predomina o lirismo.
É a emoção que o move ao tratar qualquer tema; vibram nele o amor ou a indignação quando olha o mundo, quando critica a desigualdade social.
Cineasta, Sérgio Ricardo não podia deixar de trazer para seus poemas a riqueza de imagens que cria através de um vocabulário amplo, rico em cores e imagens a nos envolver.
Compositor, sua poesia é repleta de ritmo, criado pelas rimas ou pelo uso de metros irregulares, por aliterações. A sinestesia é outro elemento que vem enriquecer seus poemas, tocando o leitor com sensações visuais, auditivas, olfativas, táteis, enfim, somos envolvidos por sua poesia, não apenas pelos temas, mas pela emoção e sensações que sua linguagem é capaz de criar.
Suas experiências recolhidas no correr de anos e registradas, quase como um documento de suas experiências, nesta altura de sua vida ganharam um sentido, um peso especial.
O que não chamou minha atenção pouco tempo atrás, hoje que o poeta já não está entre nós, tomou um sentido novo, premonitório mesmo.
O que levou Sérgio Ricardo a iniciar uma obra com um poema com o nome de "canção Calada", que também dá nome ao livro?
« Sem fôlego e sem sorte
Garganta fechada
A boca seca e aberta
O poema aborta
Uma canção calada »
Sim, trata-se de uma reflexão sobre a criação poética, é pura metalinguagem, com certeza, mas o que o levou a julgar que sua poesia calava-se? Foi sua capacidade de criação artística que se calou, ou intuiu o poeta que ele é que estava prestes a se calar? O poema debate-se, busca uma saída, enrola-se em versos desordenados, mas nada disso resolve e ele « aborta / Uma canção calada »
Além de abrir a obra com um poema que não chega a nascer, o poema que encerra a obra soa hoje como uma real despedida. E fui eu que sugeri que ele o colocasse como fechamento da obra.
Em e-mail para o autor, depois de fazer uma revisão na obra, escrevi-lhe isto:
“Ah, meu querido, o poema "Meu matulão", eu usaria para fechar o livro”
Ele estava em meio aos outros e eu achei « legal » ele ser o encerramento da obra.
MEU MATULÃO
Na partida
Levo em meu matulão
Um sorriso da Luiza
Carinho de cada filho
Um raio do entardecer
No cafezal de Marília
Punhado de areia branca
Outro de terra vermelha
Uma pétala da flor
Brotada de cada amigo
Um doce beijo de língua
De cada paixão vivida
O samba de um favelado
Um retrato da galera
Do morro do Vidigal
O repente de um caboclo
Uma canção de Caymmi
E um poema de Drummond
Uma penca do meu sonho
De ver a paz resolvida
Uma doce manga espada
E a memória vazia
Dos males da humanidade
E só não levo mais nada
Pra não chegar carregado
De tanta felicidade
Sérgio Ricardo estava então gozando de plena saúde, fazendo show juntamente com seus filhos, dirigindo seu filme Bandeira de Retalhos, organizando um livro para ser publicado. Como eu poderia imaginar que essa estava mesmo sendo sua despedida?
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Marisa Dea nascida em São Caetano do Sul, SP. É professora formada em Letras (Potuguês e Francês), lecionou em escolas estaduais, foi professora na Faculdade de Letras da Universidade do ABC e na Université des Langues et Lettres de Grenoble, França. Trabalha com revisão de textos et tradução. E foi essa atividade que possibilitou uma aproximação com o ídolo da juventude. Entrou em contato com Sérgio Ricardo através das redes sociais por volta de 2011 ou 2012 e acabou por fazer a revisão de seu romance inédito, IGARANDÉ e posteriormente legendou em francês seu curta metragem, PÉ SEM CHÃO.