São Luís, 20/05/2020
Espero bastante que esta carta chegue até você, Sérgio. Me chamo Daniel Moreno, sou um maranhense de 23 anos e estudante de cinema da UFPE. Espero que esteja bem nesses momentos difíceis, aí para o sudeste.
Sérgio, em meu desenvolvimento como artista, busquei influência, sentimentos e emoções em vários lugares, e tenho várias pessoas donde busco inspiração, mas nunca me senti especificamente inclinado a escrever para nenhuma delas sobre isso. Por algum motivo, sinto que posso o fazer com você. Espero que ela te dê alguma alegria.
Quando entro em contato com sua produção artística, e quase que só com ela, tenho um sentimento muito próprio, que não consigo explicar muito bem, mas vou tentar. Não me alimento a arte do Sérgio Ricardo da mesma forma que me alimento da de outro artista que respeito e admiro - o prazer que me ocorre tem características diferentes. Nunca senti, após apreciação de uma obra, um desejo tão intenso de fazer arte, de compor, de escrever poesias, de pegar uma câmera e fazer filmes. Vai além do que estou vendo em cena, como se eu compartilhasse de um sorriso que você dá nos bastidores. Chega dá ansiedade no peito.
Tu me inspiras enormemente, Sérgio, ainda que seja produção de três (quatro?) gerações atrás, e tenho dificuldade exatamente em sintetizar exatamente o que é. Ao que pese a prepotência e aspirações típicas de um jovem artista, sinto que se compusesse bem, gostaria de compor Semente, se dirigisse bem, dirigiria Esse Mundo é Meu, e se fosse vaiado, também arrebentaria o violão e mandaria tudo para os infernos. Isso primeiro me ficou claro quando li sua entrevista para a revista Opinião sobre o filme A Noite do Espantalho. Me identifiquei em todas as suas respostas, Sérgio, senti como eu mesmo as tivesse respondendo, pois tudo o que eu acredito sobre cinema, tudo o que eu venho lutado para sintetizar e propor como o cinema que defendo, está muito claro nas simples e simpáticas respostas suas.
Gostaria que você soubesse, Sérgio, que em 20/05 de 2020 existe um jovem aspirante à cineasta que vê sua obra com olhos brilhantes; que desejo, com a maturidade de meu estilo, apontar em seu nome uma inspiração para que quem se interessar corra atrás.
Lhe encaminho uma ciranda que escrevi a um tempo atrás. É difícil criar a coragem para isso, sou bastante inseguro com o que escrevo, mas acho que não teria como ser diferente: ela é a melhor forma de representar o processo que conto aqui nesta carta. Depois de assistir A Noite do Espantalho eu fui possuído por um terrível, cruel desejo de ser poeta; apesar de que teu bioma seja o agreste e o meu seja o manguezal.
Abraços,
Daniel Moreno
MANGUE VERMELHO (2019)
Todo encaixe é violento
Toda transição, um enfarto
e na súplica do parto
é que se fabrica a vida
pois ali se brisa um vento
que arromba toda ferida
que tanto é inseticida
quanto do novo é fermento
Vento que vem de dois ares
mas se torna num momento
um só corpo turbulento
que do firmamento erode
se te chama pra marchares
não há colo que acomode
venta até que o chão sacode
'rranca as massas de seus lares
Como o mangue é em si o rio
bem como é o mar e a lama
vêm cravados em sua mama
jacaré, uçá e pintado
Também a história é um fio
e o presente é costurado
de águas passadas de um lado
de outro, pororoca em cio
Mas não é o tempo um ossário
e não há margem que o empaque
nos golpes do tique taque
o que é dado se renova
Tudo vira o seu contrário
- e piramboia de sua cova
treme com os ecos da sova
entre as águas do estuário
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Daniel Moreno é estudante de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal de Pernambuco, realizador e escritor.