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#Literatura|Eliana Pace|19 Abr 2021

RÉQUIEM PARA SÉRGIO RICARDO

Uma amiga me questiona sobre o que seria um ídolo, no momento em que choro a morte do meu ídolo maior, Sérgio Ricardo. Procuro  definições nos dicionários e não concordo com aquelas que tentam ligar um ídolo a  uma divindade ou  um objeto de veneração. Prefiro acreditar que ídolo vem a ser aquela pessoa pela qual se nutre uma intensa, enorme admiração. 

Pertenço à geração que curtiu os anos dourados e acompanhei bem de perto alguns  acontecimentos que mudaram o estilo de vida dos brasileiros.  Acompanhei a chegada da televisão no Brasil e assistia aos primeiros programas no aparelho que apenas uma das vizinhas tinha adquirido. Vi meu pai chorar quando Getúlio Vargas suicidou-se, observei a construção de Brasília no Planalto Central, orgulhei-me quando Pelé honrou meu time e minha cidade ao ser aclamado Atleta do Século. E me entristeci quando Martha Rocha perdeu o título de Miss Universo por causa de duas polegadas a mais nos quadris. 

Foi nesse período que alguns jovens trocaram as aulas de piano, quase que obrigatórias, pelas de violão, até então instrumento ligado à boemia. Ganhei um violão de segunda mão do meu pai e observei  os primeiros calos nos dedos. Passei pelas dores de cotovelo cantadas por Lupicínio, pelas amarguras de Maysa, pela voz macia de Dick Farney,  pelos garotos da Jovem Guarda e eis que me deparo com os acordes dissonantes da Bossa Nova que ficavam perfeitos no meu Di Giorgio com cordas de nylon. 

Sérgio Ricardo era uma bela figura, com sua morenice oriunda dos antepassados sírios. Encantou-me desde o início de sua carreira. Eu era uma tiete de seus trabalhos, uma admiradora, ainda que  distante,  de sua personalidade.  Não era exatamente um representante  da Bossa Nova como Bôscoli, Menescal, Carlos Lyra, Nara,  mas suas composições românticas me fascinaram, tanto quanto sua voz quente,  suas performances ao violão e ao piano. Embarquei então em Bouquet de Isabel – naõ conheço melhor interpretação do que a dele para essa música belíssima, Ausência de Você, Enquanto a Tristeza não Vem. Até chegar em Zelão e Esse Mundo é Meu que eu desafiava com meu violão. 

Ao fazer com que sua arte entrasse no terreno da contestação, compôs  trilhas sonoras de impacto para o Cinema Novo, como as de Deus e o Diabo na Terra do Sol,  não fosse ele um cidadão sempre engajado. Pertence a essa fase Beto Bom de Bola, composição com que foi vaiado em 67 no Festival de Música Popular Brasileira, em São Paulo.   Sua reação, ao quebrar seu violão e atirar o instrumento  sobre a plateia, repercutiu de tal maneira que muita gente, até hoje, esquece de suas excepcionais qualidades como músico, cineasta, compositor e artista plástico. 

Transformei-me em jornalista, fiz carreira bem sucedida na metrópole e, há alguns anos,  fui convidada pelo amigo Rubens Ewald Filho, que também já partiu, para biografar artistas de renome para a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado. Já estava na quarta ou quinta biografia quando me foi sugerido mais um nome: Sergio Ricardo. Impactada com o convite, fiquei com o número do telefone dele nas mãos, criando coragem para ligar. Começamos as entrevistas por e-mail e quando ele veio do Rio de Janeiro para São Paulo, para continuarmos o projeto, quase me ajoelhei a seus pés ante tamanho  privilégio.

Firmamos ali uma boa parceria mas, acima de tudo, uma bela amizade. Sérgio Ricardo esteve na minha casa diversas vezes, autografou todos os discos e CDs que eu tinha dele, escolheu minha sala e meu violão para posar para fotos e conceder entrevistas. Apresentou-me ao irmão, o querido e celebrado fotógrafo de cinema Dib Lutfi, às filhas Adriana e Marina, e pediu que eu o acompanhasse à visita que faria aos parentes na Vila Mariana, repleta de afetos e carinhos. Ouviu de mim uma declaração franca.  Nunca gostei de Beto Bom de Bola.

O livro ficou lindo, com uma parte escrita por mim e outra por ele. E fizemos do  lançamento, na Casa das Rosas, um evento com exposição de seus quadros e recital. Felizes os dois com a quantidade de amigos a nos cumprimentar.

De lá para cá, fomos trocando afetos. Ou por mensagens no facebook, ou por ligações, sempre carinhosas. Nos shows marcados para São Paulo, eu ficava na primeira fila. E o abraço no camarim era sempre afetuoso. 

A última vez que nos vimos foi em São Paulo,  quando ele veio lançar um livro de poemas. Estava baqueado, a memória mais fraca, mas quis saber dos meus projetos.

Quando ele partiu, para amainar a dor imensa que senti, coloquei no toca discos os LPs e CDs autografados. Me deliciei com a voz romântica e sensual das primeiras composições. E vibrei com seus gritos de alerta das que foram se seguindo: Barravento, Ponto de Partida. 

O que é ter um ídolo? Tento responder à pergunta que me fazem neste texto. Em que falo da emoção incomparável de se aproximar da alma de um artista. A alma de Sérgio Ricardo posso dizer que conheci. Ficará na minha lembrança. Eternamente.

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Eliana Pace é jornalista profissional com vivência em jornais, emissoras de rádio, agências de Comunicação Social e de Publicidade. Convidada a  colaborar com a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, assina a biografia do  compositor e cineasta Sérgio Ricardo, lançada em 2010 com o título Canto Vadio. É autora,  ainda, das biografias dos atores Renato Consorte, Geórgia Gomide, Vera Nunes, Nivea Maria e Paulo Hesse, e da dramaturga Leilah Assumpção. 


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