Outubro de 1967. Eram os primeiros anos do Regime Militar, quando, sob o estardalhaço de gritos e vaias que retumbavam nas paredes do Teatro Paramount, Sérgio Ricardo adentra o palco e cumprimenta os músicos. Diante da plateia enfurecida pediu; “Calma!”. Após várias tentativas falhas de acalmar os ânimos do público, a fúria dos gritos pareceu ecoar ainda mais alto
“Eu quero pedir aos que aplaudem e aos que vaiam, um pouco de lucidez nesse momento pra poder entender o que eu vou cantar.”
Os gritos da plateia são sobrepostos pelas primeiras notas da música. E disputando som com as vaias, o conjunto de músicos desenvolve o samba Beto bom de bola. Em um tom decrescente a música continua enquanto o barulho aumenta, e Sérgio já desgastado, anuncia: “Não consigo nem ouvir o som!”, os gritos se transmutam em brados de censura ao artista. “Vocês ganharam! Vocês ganharam!” esbraveja o músico, pouco antes de executar a ação que lhe renderia um lugar marcado na história, não só do III Festival de MPB como na própria música brasileira.
Enfurecido, marcha rumo ao banco mais próximo e com uma pose digna de um rockstar, destrói o violão que tocara há poucos segundos. Ele arremessa o instrumento para a plateia que em êxtase comemora a vitória sob o músico.
O episódio foi tão marcante que deu título à biografia do artista: Quem quebrou meu violão. A quebra do instrumento foi o apogeu de uma revolta quanto à ignorância do povo brasileiro acerca de sua própria realidade.
Longe da fama do músico rebelde que destruiu seu violão, a obra de Sérgio Ricardo traz muita sensibilidade de um artista versátil que soube transpassar entre várias modalidades artísticas, deixando sua marca na arte brasileira.
Na história de um menino da periferia que sonha com calças brancas, Sérgio Ricardo dirige a narrativa através das vielas do morro, das crianças brincando e do abismo social que separa as sociedades central e periférica, o tema social mais uma vez está presente na criação do artista e se desenrola com uma criticidade digna de um literato do Realismo. O menino da calça branca traz uma espécie de conto audiovisual sobre os sacrifícios de adaptar-se e sobre a tentativa de se transformar em alguém que não é. O menino, após ganhar a tão sonhada calça branca, percebe que deveria tolher-se de sua diversão em nome de um desejo provocado pela necessidade de aparentar, de ascender socialmente, e quando isso ocorre, percebe que não é através da roupa que ele deixará de ser quem realmente é.
Assim como o menino se autoafirma enquanto indivíduo ao fim do curta-metragem, Sérgio Ricardo se afirma enquanto o artista que não é unânime, que não se importa em alcançar a fama, e que sabe que só produz para uma parcela da população.
Outra obra marcante que traz a versatilidade de Sérgio Ricardo é o samba Zelão. Incrustrado de consciência social até os últimos versos, a canção conta a história de Zelão, um homem que perdeu seu barraco, derrubado pela chuva. A solidariedade para com seus semelhantes é marcada durante toda a história. “Mas assim mesmo o Zelão/ Dizia sempre a sorrir/ Que um pobre ajuda outro pobre até melhorar”. Escrito com uma melancolia típica das antigas baladas, Zelão, traz uma letra curta, mas cheia de significado.
Calabouço é outra composição que merece destaque. A bossa escrita em plena ditadura militar, trouxe o protesto à morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, assassinado pela polícia durante um protesto no restaurante universitário Calabouço, na cidade do Rio de Janeiro. Fazendo resistência ao silenciamento, Sérgio Ricardo não aceita a censura e canta acompanhado pelo clímax do ritmo sincopado do violão: “Quem canta traz um motivo/ (Cala a boca moço)/ Que se explica no cantar/ (Cala a boca moço)/ Meu canto é filho de Aquiles/ (Cala a boca moço)/ Também tem seu calcanhar/ (Cala a boca moço)/ Por isso o verso é a bílis/ (Cala a boca moço)/ Do que eu queria explicar/ (Cala a boca moço)/ Cala o peito, cala o beiço/ Calabouço, calabouço”.
Aos 88 anos Sérgio Ricardo falece em decorrência de uma insuficiência cardíaca. Não se pode de forma alguma ignorar que como artista, não se deixou levar pelas tendências da indústria assim como não deixou de questionar e se impor contra a repressão. Seu legado sem dúvidas deixou sua marca na cultura brasileira, e muito além do homem que quebrou o violão, fica a lembrança de um artista que se dedicou durante toda a vida a manter seu “olho aberto ouvido atento, e a cabeça no lugar”.
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Júlia Machado tem 21 anos, é cabofriense e estudante do último período de Jornalismo. Estagiou como repórter no Expresso UVA, um projeto da Agência Experimental de Comunicação da UVA - Cabo Frio. É fã do gênero de Jornalismo Literário, da linguagem audiovisual e de novas formas de contar histórias. Procura unir o estudo de cultura, arte e representação com a comunicação.