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#Cinema|William Plotnick|07 Jun 2021

Kleber Mendonça Filho sobre a arte de Sérgio Ricardo e a música de Bacurau

Perguntas por William Plotnick e Gustavo Menezes via CINE LIMITE

Em 1974, A Noite do Espantalho, de Sérgio Ricardo, rodado inteiramente no estado de Pernambuco, foi exibido no Festival de Cinema de Nova York. Somente quarenta e cinco anos depois, quando Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, agitou o Festival de Cinema de Nova York em 2019, Sérgio Ricardo voltou a Nova York, desta vez numa canção. A Noite do Espantalho não foi bem recebido pela crítica quando estreou no NYFF, mas uma nova geração de espectadores agora o reavalia como um dos grandes filmes brasileiros dos anos 70. Como tal, a exibição de Bacurau na NYFF pode ser vista como uma espécie de segundo advento de Sérgio Ricardo, sua voz se derramando sobre o público do Festival de Cinema de Nova York durante uma das cenas mais famosas do filme: a procissão do enterro de Dona Carmelita.

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Limite: Os clássicos filmes do Cinema Novo dirigidos por Sérgio Ricardo, bem como suas famosas trilhas sonoras, têm um lugar de destaque na história do cinema brasileiro. A menção a seu nome e a presença de sua canção em Bacurau servem de homenagem ao artista e seu legado. Qual é sua relação com o cinema de Sérgio Ricardo, e com A Noite do Espantalho especificamente?

 

Kleber Mendonça Filho: É fascinante poder responder essa pergunta porque o Sérgio Ricardo chegou a mim de várias maneiras indiretas.

Quando eu era criança e adolescente, eu frequentei muito a Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, porque minha mãe trabalhava lá como pesquisadora e historiadora. E na área de cultura da Fundação Joaquim Nabuco tinha o pôster do Noite do Espantalho. E aquele pôster sempre me chamou muito a atenção. Ele passou a fazer parte do meu imaginário, porque tem o Alceu Valença com tonalidades psicodélicas, é extremamente gráfico. E durante uma parte da minha infância, entrando pela adolescência, esse cartaz tava lá.

 

 

KMF (cont.): No final dos anos 80, eu voltei a ver muito esse cartaz quando ia à Fundação Joaquim Nabuco. Naquela época, eu já tinha visto Mad Max (1979) e Max Max 2 (1981), e foi quando eu aprendi finalmente que A Noite do Espantalho era um filme que tinha sido feito em Pernambuco. Então, de uma certa forma, A Noite do Espantalho me aproximou muito da ideia de fazer cinema, porque, diferente de todos os outros filmes, que eram feitos no Rio ou em São Paulo ou nos Estados Unidos, Hollywood, Europa, ou Austrália (no caso do Mad Max), esse filme tinha sido feito em Fazenda Nova. Um lugar que eu conhecia, que ficava a 200 km do Recife, e onde a Paixão de Cristo é encenada todo ano no Teatro Nova Jerusalém. A ideia de que esse filme tinha sido feito perto de onde eu vivia era uma informação bastante excitante pra mim. 

 

Finalmente eu vi A Noite do Espantalho, na própria Fundação Joaquim Nabuco. E ele me lembrou, numa associação livre, os filmes do Mad Max. Era diferente de todos os filmes brasileiros que eu tinha visto até então. Trinta e dois anos depois, eu posso dizer que ele é em grande parte diferente de todos os filmes brasileiros que eu já vi na minha vida. No final dos anos 90, fui convidado pra trabalhar lá e ser o curador da área de cinema. Eu achei o cartaz da Noite do Espantalho, e ele fez parte da sala onde eu trabalhava.

 

Em 1997 eu estava lançando meu primeiro curta-metragem que teve uma repercussão maior,1 o Enjaulado, e foi no Rio Cine, que depois virou Festival do Rio, que Enjaulado passou na mesma sessão com um documentário maravilhoso, de Márcia Derraik e Simplício Neto, chamado DIB (1997). O filme, corretamente, faz de Dib Lutfi um grande herói do cinema brasileiro, e, por causa de Márcia e Simplício, que viraram novos amigos durante o festival, eu passei a conhecer e admirar muito Dib. Conheci o Dib ao ponto de, uma vez que ele tava fazendo um filme no Recife, ele foi jantar lá em casa. Passamos a ter uma amizade marcada pela admiração.

E o Dib é irmão do Sérgio Ricardo. Isso pra mim foi fazendo do Sérgio Ricardo não só aquela voz no Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e o diretor da Noite do Espantalho, mas o irmão de Dib. Que pra mim era muita coisa, porque pensar no que Dib fez no cinema brasileiro, em todas as imagens que ele filmou, inclusive no próprio Noite do Espantalho... Eu me sentia como se eu tivesse próximo da grandeza do cinema brasileiro. A mesma sensação de descobrir que A Noite do Espantalho tinha sido feito em Fazenda Nova. Ou seja, fazer cinema estava muito perto. Era possível fazer cinema.

 

E é incrível pensar, agora que eles morreram, que o legado desses dois irmãos que fizeram tanta coisa pra cultura brasileira, seja lembrado. Que bom que um filme como Bacurau, feito em 2019, traga de volta um pouco dessa riqueza, e a celebre junto a outras iniciativas.

 

L: "Vamos dar início ao cortejo em homenagem a Dona Carmelita, e é por isso que basicamente toda Bacurau se encontra reunida aqui neste momento. Dona Carmelita, que viveu 94 anos para contar a história…. Que foi uma figura muito importante pra nossa gente. E como é costume na nossa comunidade, eu deixo com vocês agora a mensagem do senhor Sérgio Ricardo".

Os fãs de Bacurau reconhecem a fala acima, do DJ Urso, que antecede aquela que talvez seja a cena mais famosa do filme: a procissão do enterro de Dona Carmelita. A canção de Sérgio Ricardo usada na cena é “Bichos da Noite”, composta em parceria com Joaquim Cardozo para a peça O Coronel de Macambira, de 1967. Quando você conheceu a música? Como foi a decisão de usá-la no filme, em uma cena tão importante? Ela teve alguma influência na escolha do nome da cidade e do título, ou foi escolhida depois que o título já estava definido?

 

KMF: Eu gosto muito dos DJs que mostram respeito por quem eles estão tocando. Tem DJs que simplesmente são automatizados, e tem DJs que sabem o que estão tocando. Eu acho muito bom que o DJ Urso mencione nominalmente Sérgio Ricardo, porque mostra respeito pelo artista. E acho que estabelece o Bichos da Noite como uma espécie de hino local. Aquela música de fato não poderia ser melhor praquela comunidade.

Uma coisa maravilhosa que aconteceu é que eu mandei uma versão do roteiro de Bacurau pra um grande amigo desde a época de universidade, Toinho Castro. A época que eu vi A Noite do Espantalho no cinema da Fundação é exatamente a época que eu comecei a amizade com Toinho, na universidade. Coincidências não existem, né?

Toinho leu o roteiro de Bacurau e imediatamente me mandou o link no YouTube do Bichos da Noite, que eu não conhecia. E aí eu ouvi e compartilhei o link com Juliano. A gente imediatamente ficou impressionado não só com a beleza e a força, mas como aquela música parecia que tinha sido escrita pro filme, pra cena do enterro. A gente não parava de ouvir a música e ficava muito impressionado com o uso das palavras, a poesia da música, a sugestão do fantástico que estava lá… Uma poesia muito brasileira. A sequência do enterro de Carmelita já existia, e o título do filme é Bacurau desde 2009, então quando Toinho me mandou o link da música é porque ele leu o roteiro e fez a associação clara com Bichos da Noite, que tem um verso que fala em “horas do bacurau”.2 É um alinhamento maravilhoso de elementos.

Então, é curioso como Sérgio Ricardo chegou em minha vida e meu trabalho de maneiras indiretas. Claro, quando eu vi o Deus e o Diabo, a voz dele tava lá. Mas essa coisa do cartaz, e de Dib, e de Toinho mandar o link do YouTube é maravilhosa. Uma das coisas mais lindas do cinema e do trabalho artístico é como as influências e o que faz parte da sua vida terminam aparecendo nas coisas que você faz. Porque você é composto por coisas que te moldaram como pessoa, como artista.

 

L: Além de Sérgio Ricardo, Bacurau tem vários elos musicais com o Cinema Novo. A abertura do filme ao som de Não Identificado, na voz de Gal Costa, parece se relacionar diretamente com o final de Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr., onde se ouve a mesma gravação enquanto a personagem de Anecy Rocha deixa a cidade. Por outro lado, em Bacurau o movimento é de aproximação da cidade. Há ainda Réquiem para Matraga, tema composto por Geraldo Vandré para o clássico A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos. 

Você vê relações entre Bacurau e o Cinema Novo?

KMF: Eu acho que não sou eu quem deve estabelecer parentescos entre qualquer filme que eu faça e outras obras. De fato, ao longo dos anos, com O Som ao Redor, eu sempre fui muito econômico, lacônico, ao falar sobre referências. Mas, aos poucos, eu fui abrindo um pouco mais essa proteção e eu acho que, hoje, cada vez mais, talvez pela facilidade de acesso à informação, cada vez mais as pessoas, cinéfilos, críticos, público em geral, embarca em safáris de tentativa de identificar, de mapear de onde vieram as referências pra cada filme. Eu acho curioso, na maior parte das vezes. Às vezes eu acho muito reducionista, porque as referências precisam ser emotivas, e muitas vezes elas não são guiadas por você ser fã de alguém, é simplesmente uma questão de que músicas e imagens fazem parte da sua vida, da sua trajetória. E você simplesmente ama determinadas coisas. 

Por exemplo, Não Identificado é uma canção magnífica. É magnífica como produção musical, como som, sonoridade, a voz de Gal Costa, o que ela diz, a letra… Tudo é maravilhoso. E te coloca num estado de espírito que é muito especial, principalmente pra abrir o filme. Ela funciona em muitos níveis. 

Fui eu quem trouxe Não Identificado pro filme. Eu trouxe, num dia de montagem. Entreguei pro Eduardo Serrano, o montador, Juliano [Dornelles] tava no sofá, e eu falei “eu queria que vocês dessem uma olhada nisso aqui”. E foi incrível a sensação. Você ver a junção daquele som, daquela música, com o rascunho dos efeitos especiais do planeta Terra. Mas já dava pra entender que tinha uma força muito forte. O contraste entre uma música tão brasileira, tão particularmente brasileira na sua forma mais linda, e imagens que a gente associa muito ao cinema industrial americano. Do CGI, do espaço…  Essa tensão entre som e imagem nos pareceu muito correta.

E num outro momento da montagem Juliano faz a mesma coisa. Ele diz assim: “vamos sentar aqui, vamos testar isso aqui”. E ele traz o Réquiem Para Matraga. E foi incrível. Muito linda a associação da música com aquele momento do filme. E não só isso, é um daqueles raros momentos em que cada corte já parecia tá esperando a música. Houve um incidente magnífico de montagem onde a gente simplesmente colocou a música e ela parecia tá trepando lindamente com toda a sequência do Pacote levando os amigos mortos. Pra cada corte, inclusive. Então, no final das contas, é a junção de uma música maravilhosa com o filme que a gente tá fazendo. 

Eu acho que o fato de serem expoentes do Cinema Novo, na verdade é algo que pra gente é uma informação curiosa e no final das contas também emotiva mas em primeiro lugar é tudo uma questão de som e de sentimento. Em terceiro lugar, a associação histórica pra gente é interessante, a gente gosta, claro, mas no final das contas é um momento da arte brasileira, da cultura brasileira, que nunca deixará de ser incrível. São obras artísticas já imortais. Esse momento da história do Brasil que produziu essa música e esse cinema. Então é tudo uma questão de organicidade. Não há planejamento nisso. Não há estratégia de jeito nenhum. É: “Dá uma olhada nessa música aqui. Caralho, é incrível. Vamo tentar comprar os direitos e usar no filme.”

 

  1. Kleber já tinha feito quatro curtas.
  2. Bacurau, ou Nyctidromus albicollis, é um pássaro também conhecido como carimbamba, curiango, entre outros.

 

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William Plotnick é Presidente /Co-fundador do Cine Limite 

Gustavo Menezes é COB / Diretor de Operações Brasileiras / Co-fundador do Cine Limite


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