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#Cinema|Luíza Alvim|17 Mai 2021

Menino da calça branca: lirismo social e Bossa Nova

Um lirismo social

O primeiro filme de Sérgio Ricardo, o curta-metragem Menino da calça branca (1962)¹, foi realizado quando o grupo do Cinema Novo brasileiro ainda tomava suas rédeas. A partir da história de um menino de favela que recebe uma calça branca de presente e, orgulhoso pelo símbolo de status social, passeia com ela pela cidade, o filme já revela o interesse de Sérgio Ricardo pelos menos favorecidos, algo que permeará toda a sua obra fílmica (como observado por Gustavo Menezes de Andrade em sua monografia de 2017). Mas, se considerarmos a carreira dele como um todo, não era a primeira vez em que esse interesse se manifestava. Além de ter trabalhado como ator, Sérgio Ricardo começou como músico e compositor, e sua música “Zelão”, do ano anterior ao filme, tinha como tema um músico, morador de favela, que perde sua casa numa enchente

Colocando seus multi-talentos no seu filme de estreia, a música de Menino da calça branca foi feita também por Sérgio Ricardo, explorando a Bossa Nova com apenas voz, violão e flauta. O que nos propomos a fazer aqui é uma reflexão sobre a temática geral desse curta-metragem (a vida de uma criança de favela da cidade do Rio de Janeiro) e seu desenvolvimento junto à música do filme, considerando como isso tudo se situa dentro do contexto da música no cinema brasileiro da época.

Não era a primeira vez que um filme mostrava imagens de uma favela carioca. Há a referência de Favela de meus amores, filme de 1935 de Humberto Mauro, embora, por ser um filme perdido, não tenhamos como avaliar diretamente suas imagens e sons. Mas uma referência importante da representação da favela para os cineastas dos anos 1960 foi certamente Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, de 1955, filme que retrata o cotidiano de cinco crianças da favela em sua luta pela sobrevivência diária. 

O filme de Nelson Pereira foi considerado por vários pesquisadores, como Mariarosaria Fabris (2007), como tendo recebido aportes do Neorrealismo italiano em seu modo humanista de olhar os desfavorecidos (a importância da postura ética, como defendia Cesare Zavattini²), cujas histórias muitas vezes tinham desfechos tristes ou falta de perspectivas. 

Rio, 40 graus tem imagens feitas em favelas, como no Morro do Cabuçu, e vemos até um ensaio da escola de samba Unidos da Cabuçu na quadra do morro, na sequência final. É digno de nota que Nelson Pereira dos Santos decidiu fazer a montagem de Menino da calça branca sem cobrar nada, ao ficar entusiasmado com o material de Sérgio Ricardo. 

Na verdade, na mesma época em que Sérgio Ricardo terminava a montagem de seu curta-metragem o Centro Popular de Cultura (CPC), órgão da época ligado ao Partido Comunista, tinha o projeto de realização de um filme coletivo Cinco vezes Favela. Dele, fizeram parte cinco curtas-metragens de diretores que iriam constituir o chamado Cinema Novo brasileiro: Leon Hirzsman (com Pedreira de São Diogo), Cacá Diegues (Escola de Samba, Alegria de Viver), Miguel Borges (Zé da Cachorra), Marcos Farias (Um favelado) e Joaquim Pedro de Andrade (Couro de gato)³

Sérgio Ricardo contou em entrevista que seu filme também foi cogitado para compor o coletivo do CPC, mas acabou preterido por “excesso de lirismo”. Acrescentou que talvez o filme não tivesse o didatismo que o CPC pretendesse?. É curioso que, dentre os cinco filmes escolhidos, Couro de gato também tratasse de crianças e é por isso que faremos considerações sobre ele em comparação com o Menino da calça branca, além de nos referirmos ao importante longa-metragem predecessor de Nelson Pereira dos Santos.

A que corresponderia essa acusação de excesso de lirismo quanto a Menino da calça branca? Assim como Nelson Pereira e Joaquim Pedro, Sérgio Ricardo filmou em locação numa favela (no seu caso, a Macedo Sobrinho, hoje extinta). No primeiro plano do filme, vemos os barracos, com seus tetos mal-ajambrados, e, na entrada dos créditos, passamos a ouvir a canção “Enquanto a tristeza não vem”. A seguir, vemos o protagonista, o menino interpretado por Zezinho Gama, em suas brincadeiras solitárias ou com amigos. Não são poupados detalhes realistas, como a vala de esgoto a céu aberto que corre numa das vielas. Não há maquiagem da favela.

Talvez o maior problema para essa crítica de “lirismo” seja a de que o menino favelado de Sérgio Ricardo, quando se dirige ao asfalto?, não o faz para trabalhar, diferentemente dos vendedores de amendoim de Rio 40 graus ou, em Couro de gato, dos meninos que caçam gatos na cidade para poder vendê-los na favela para a fabricação dos tamborins das escolas de samba. Ao menino da calça branca é permitida no asfalto uma experiência puramente lúdica, fora do mundo do trabalho, em que, vestido com sua calça branca, imita o andar de adultos, exibindo, orgulhoso, sua peça de vestuário.

Além disso, o fato de, apesar de todos os cuidados, ter sua calça enlameada, embora faça o menino ir às lágrimas, não é algo tão inexorável e trágico quanto a morte presente em Rio, 40 graus e Couro de gato: no primeiro, a morte de um dos meninos; no segundo, do lindo gatinho branco levado ao sacrifício. Há uma dureza, uma crueldade da qual os oprimidos não têm como fugir, nos filmes de Nelson Pereira e Joaquim Pedro, que, de certa forma, ecoa alguns destinos de personagens de filmes neorrealistas italianos: o desempregado que perde sua bicicleta e passa a vergonha de ser considerado ladrão na frente do filho em Ladrões de bicicleta (1948), ou o aposentado que recupera seu cachorro, mas continua sem solução para a sua sobrevivência financeira em Umberto D (1952), ambos de Vittorio de Sica. O menino de Sérgio Ricardo também é poupado de uma maior dimensão trágica, embora ela não esteja ausente. Por exemplo, no final do filme, chorando por causa da calça enlameada, o menino é consolado por um Papai Noel bêbado (interpretado pelo próprio Sérgio Ricardo). Este, por sua vez, com traços de personagem trágico, também chora e é consolado pelo menino. Mas, como o menino é poupado de grandes tragédias no filme, a calça é lavada pela mãe e ele volta a brincar no morro com sua velha bermuda remendada.

É aqui que acontece um encontro com “o real” (no sentido do neorrealismo de Zavattini) no filme de Sérgio Ricardo: vemos o menino segurar um revólver em primeiro plano, o que já nos causa apreensão se seria uma arma de verdade, se estaria carregada. Ele atira e outro menino atira de volta, a imagem congela, o filme acaba. O que teria acontecido? Uma brincadeira comum entre meninos de “polícia e ladrão”, uma tragédia naquele momento ou o prenúncio de um futuro no crime? Se olharmos por esse viés, o filme de Ricardo acaba sendo bem mais pessimista que os de Nelson Pereira e Joaquim Pedro. Um lirismo prenhe de trágico. É como diz o verso da canção de Sérgio Ricardo dos créditos do filme e repetida ao final: “Brinca um pouquinho enquanto a tristeza não vem.”

É preciso levar em conta que, na época do filme, início dos anos 1960, as favelas cariocas ainda não eram tão violentas, ainda não tinham concentrado grande parte do crime organizado do tráfico de drogas, algo que começa a ocorrer a partir do fim dos anos 1970. O que havia ali era a violência social contra os excluídos. Mas o final do Menino da calça branca, tal como o Angelus Novus de Paul Klee, olha também para o futuro e antecipa, mesmo que não intencionalmente, a perda de uma visão romantizada das favelas que ainda se nota nesses filmes e em sua recepção pelo público.

Pode-se também argumentar o “branqueamento” da favela do Menino da calça branca, talvez, porque seus três personagens principais, o menino, sua mãe e o reparador de bonecas (o mesmo Papai Noel bêbado) não são negros. Embora, desde os primeiros planos do filme, percebamos que quase todos os amiguinhos do menino protagonista sejam negros, nenhum exerce grande papel na história do filme. Longe de serem reprovações pertencentes apenas ao nosso tempo dos anos 2020, essa mesma crítica foi feita na época por Ruy Guerra e outros (ANDRADE, 2017). No entanto, pode-se argumentar que tampouco é negro o menino que se firma como protagonista em Couro de gato, de Joaquim Pedro de Andrade?.

 

Música e favela carioca nos anos 1955 - 1962

É importante considerar como Menino da calça branca pode ser posicionado dentro de um panorama maior da música brasileira, ainda mais porque Sérgio Ricardo, antes de se voltar para o cinema com este filme, já tinha uma carreira assentada no meio musical. Sérgio Ricardo compôs a música do filme no estilo da Bossa Nova que então explorava e escolhe deixá-la apenas acompanhada por violão e flauta, algo bastante incomum na trilha musical de cinema da época, quando se optava geralmente por se fazer uma orquestração, mesmo quando se tratava de canções populares. 

Por exemplo, é como procedeu Nelson Pereira dos Santos quanto à música de Rio, 40 graus. Embora o diretor tenha usado como tema principal do filme o samba de Zé Keti, “A voz do morro”, ele foi orquestrado por Radamés Gnattali, músico bastante experiente em orquestração por seu trabalho na rádio e acostumado com o trânsito entre erudito e popular. Segundo o que depreendemos de uma entrevista de 2001 de Nelson a Guerrini Júnior (2009), o cineasta teria preferido um uso de música menos grandioso, mas a “orquestra” era quase que uma imposição natural daquilo que se aceitava na época como “música de cinema” e, portanto, mesmo num filme que precisou ser interrompido diversas vezes por problemas financeiros, gastou-se bastante dinheiro para a gravação da música.

No caso do filme de Sérgio Ricardo, sendo financiado pelo próprio diretor e, sendo o curta-metragem em si um formato mais livre e propenso a experimentações, ele recebe essa trilha musical mais “enxuta” de voz, violão e flauta, sem tratamento orquestral. Mesmo assim, o papel da música é primordial no curta. Além de sua presença em quase toda a extensão do filme, em sua maior parte como música extradiegética (não justificada no mundo narrativo) em primeiro plano sonoro, o elemento da fala é reduzido ao mínimo: o único momento de fala articulada é quando o personagem do Papai Noel, bêbado, tenta consolar o menino. Ainda assim, é uma fala pouco clara de um personagem embriagado.

O filme é basicamente construído em torno de duas canções principais, “Enquanto a tristeza não vem” e “Menino da calça branca”. A primeira está na forma cantada (por Sérgio Ricardo), com acompanhamento de violão (do próprio Sérgio) e flauta, nos créditos do filme e voltará em diversos arranjos no filme. Em sua primeira parte, por exemplo, há toda uma confluência entre os espaços diegético (justificado no mundo narrativo do filme) e extradiegético: o personagem do reparador de bonecas assobia o tema da canção e, pouco depois, um cantarolar com violão e flauta segue a linha melódica de maneira extradiegética. O cantarolar extradiegético com violão e flauta é novamente ouvido quando o “Papai Noel”, bêbado, deixa o pacote com a calça branca na casa no menino, no meio da noite.

A partir do momento em que o menino abre o pacote e vê a calça branca na manhã seguinte, escutamos outra música: é a canção “Menino da calça branca”, que ouvimos junto a planos gerais da paisagem do Rio de Janeiro e das favelas. A letra da canção faz menção direta aos acontecimentos do filme. De fato, as palavras das duas canções têm uma função extremamente narrativa? num filme que abdica de diálogos. 

Da mesma maneira que ocorrera com a canção anterior, “Menino da calça branca” volta em arranjo com sua melodia cantarolada em dois momentos seguintes, numa “canção sem palavras”, como se não precisássemos mais das palavras para recordar os sentimentos evocados pela letra?.  

A grande virada narrativa é anunciada também pela música: o menino vê passar uma banda tocando com seus metais e instrumentos percussivos um arranjo de “Enquanto a tristeza não vem”, um anúncio que o seu idílio com a calça branca terá logo um fim. De fato, pouco depois, uma bola de futebol cai numa poça de lama e mancha toda a sua calça. A banda de música, cujo som havia sido subitamente silenciado (num efeito brechtiano, comum no Cinema Moderno), volta repentinamente para marcar a erupção da tristeza no menino.

A canção “Menino da calça branca” é ouvida novamente em sua forma cantarolada, acompanhada por violão e flauta, e em tonalidade menor, quando o menino, num momento de revolta contra o que lhe aconteceu10, destaca o anúncio da calça branca do jornal, urina no restante dele e joga o anúncio ao vento, num momento libertador de sua tristeza. A canção “Enquanto a tristeza não vem” fecha o filme na sua forma cantada, enfatizando que as brincadeiras infantis do menino são apenas um interlúdio enquanto a tristeza não vem.

Gostaríamos também de destacar, além da importância das duas canções mencionadas, o grande papel do violão na trilha musical como um todo. Vários momentos de transição, que, em filmes convencionais, especialmente longas-metragens da época, seriam feitos por orquestra, são, em Menino da calça branca, feitos com uma levada percussiva no violão, o que reforça a importância do instrumento dentro da música do filme e a inovação que isso representava como trilha musical.

Relacionando a música de Menino da calça branca com a de Rio 40 graus, é interessante que a do longa-metragem de Nelson Pereira dos Santos, assim como a música do curta de Sérgio Ricardo, tem toda a sua base numa canção11, o já mencionado samba de Zé Keti, “A voz do morro”. Ele é ouvido já nos créditos do filme e pode ser considerado como leitmotiv tanto dos cinco meninos da favela, quanto da favela em si. 

Em quase todas as incursões musicais, o samba de Zé Keti está na versão orquestral de Radamés Gnatalli e sem a letra, como música extradiegética. No entanto, na última vez, podemos ouvi-lo diegeticamente na quadra do morro. É como se o samba fosse devolvido ao seu lugar de origem ao final do filme.

Embora o samba de Zé Keti esteja quase sempre no filme transfigurado no seu formato sinfônico, é interessante que, ainda assim, temos a associação – confirmada na sequência final –, ao gênero musical do samba, enquanto que, no filme de Sérgio Ricardo, ainda que ouçamos duas vezes um samba cantado a capella por voz feminina diegeticamente (em volume muito menos intenso) em planos da favela, o que predomina é a música de Bossa Nova, gênero que era muito associado a uma música de classe média urbana intelectual, relacionada a problemas burgueses. No entanto, como já mencionado, Sérgio Ricardo fez parte de uma corrente da Bossa Nova que buscou politizar a música e sua letra traz em si os problemas sociais mostrados pelo filme, algo com que o artista já se preocupava em sua canção “Zelão”. Já o diretor Nelson Pereira dos Santos persistiu na parceria com o sambista Zé Keti, num filme que tem o compositor de samba e o roubo de sambas como tema, Rio Zona Norte (1957)12

A questão da autenticidade da música e gêneros musicais em filmes de favela é bastante complexa, ainda mais se levarmos em conta que estão no nível extradiegético, como é o caso da música de Sérgio Ricardo em Menino da calça branca. Poderíamos evocar ainda um filme muito influente da época, realizado numa favela do Rio de Janeiro e com elenco todo negro, tendo crianças também como personagens importantes: Orfeu Negro. É uma produção francesa de 1959, dirigida por Marcel Camus, cuja trilha musical, muitas vezes diegética e executada pelo personagem Orfeu, foi baseada na da peça Orfeu da Conceição de Vinícius de Moraes de 195413 e transcrita para o filme em arranjos mais próximos da Bossa Nova. Ou seja, de certo modo, esse filme influencia uma tradição de se associar música no estilo Bossa Nova a filmes de favelas cariocas.

Quanto a Couro de gato, as músicas estão incluídas de forma mais orgânica com as imagens, no sentido de não se destacarem tanto quanto em Rio 40 graus e, principalmente, em Menino da calça branca. Isso ocorre mesmo que, como no filme de Sérgio Ricardo, a música seja o principal elemento sonoro de Couro de gato (em relação ao elemento falado, a voz over é ouvida de forma bastante econômica no início do filme e há apenas dois momentos de voz articulada na diegese, mesmo assim, apenas na forma de palavras), sendo o filme baseado também em canções da Bossa Nova. Jogando com as convenções aceitas de música no cinema, o compositor Carlos Lyra explora variações melódicas, harmônicas e principalmente timbrísticas para as incursões musicais no filme. Assim como Sérgio Ricardo, Carlos Lyra e seus parceiros nas canções do filme, Nelson de Lins e Barros e Geraldo Vandré, vinham da Bossa Nova.

A única canção ouvida com letra em Couro de gato é “Quem quiser encontrar o amor” (de Carlos Lyra e Geraldo Vandré), em imagens de desfile de escola de samba, como se estivesse sendo cantada diegeticamente por aquele coletivo. Mesmo assim, há uma orquestração de base. Essa é a música que marca toda a relação do menino protagonista Paulinho (nome do intérprete nos créditos) com o gato branco, que ele rouba do quintal de uma mulher rica. A mulher se interessa pelo menino, chama-o para tomar suco e, em todos esses momentos, a canção é ouvida numa variação instrumental jazzística, numa associação convencional já aceita no cinema brasileiro da música de jazz com a burguesia. Essa mesma música, numa orquestração mais vistosa, é a que ouvimos nas cenas mais líricas da relação de amizade do menino com o gato branco, já em sua posse na favela, e sua difícil decisão de ter que vendê-lo para o abate.

Já a canção nas primeiras imagens do filme é “Depois do Carnaval” (de Carlos Lyra e Nelson Lins e Barros), em planos da vista da cidade a partir da favela, que lembram os planos de abertura de Rio 40 graus, sendo também ela a música que fecha o filme. No entanto, nesse início de filme, para além da orquestração tradicional, há a permanência dos instrumentos percussivos que soavam na música dos créditos e que são representados diegeticamente, pouco depois, pelos tamborins, fazendo uma relação maior com o samba das favelas. É interessante também que, se a levada de violão de Sérgio Ricardo pontuava algumas transições em Menino da calça branca, em Couro de gato, a percussão serve como som característico da “caçada” dos meninos aos gatos e, depois, da perseguição das pessoas do asfalto aos meninos.

 

Considerações finais

É curioso que tanto Menino da calça branca e Couro de gato não tenham o samba tradicional “de raiz” na base de sua trilha musical, mas sim, a Bossa Nova, que, talvez para um público estrangeiro – e levando em conta todo o sucesso de Orfeu Negro de Marcel Camus –, tenha ficado como símbolo de favela e, por extensão, de música brasileira. No entanto, mesmo o samba de Zé Keti em Rio 40 graus está em formato orquestral, distante também do “samba de raiz”. Além de tudo, é de se argumentar que o próprio sambista Zé Keti tinha um grande trânsito no “asfalto”, fazendo um samba já imerso em outras influências, o que mostra a dificuldade de se entrar numa discussão ontológica sobre o que seria um verdadeiro samba. 

De todo modo, todos os três filmes mostram um olhar cheio de lirismo dos seus diretores para os desfavorecidos, colocando-os no centro do debate cultural. Chamamos a atenção para a importância de considerarmos o filme de Sérgio Ricardo Menino da calça branca na discussão sobre filmes da época passados em favela, já que ele costuma ser esquecido, tal como foi deixado de fora do filme coletivo do CPC.

 

Notas

1. O filme também marca a estreia de Dib Lutfi (irmão de Sérgio Ricardo) como fotógrafo de cinema. Dib será um nome essencial para o Cinema Novo, virando quase que sinônimo de “câmera na mão” em filmes importantes do movimento, como Terra em transe (Glauber Rocha, 1967).

2. Zavattini defendia que o cineasta deveria proceder à representação das classes pobres como se ele pudesse olhar por um buraco na parede. Não se trata aqui de um procedimento com objetivos puramente voyeurísticos, mas sim como um meio para enxergar o Outro de modo compassivo e humano.

3. Couro de gato foi produzido em 1960, montado em 1961 na França (para onde o diretor havia ido para um estágio) e acabou sendo adicionado ao filme coletivo, exibido em 1962.

4. Na entrevista de Sérgio Ricardo a Augusto Buonicori, realizada em março de 2014 e publicada em https://vermelho.org.br/2020/07/25/entrevista-de-augusto-buonicore-com-sergio-ricardo/ 

5. “O asfalto” é, na linguagem popular, a referência às ruas pavimentadas da cidade, em oposição à favela.

6. Os créditos indicam que os meninos do filme eram moradores dos morros do Cantagalo e do Pavãozinho. O tema racial, aqui brevemente mencionado, mereceria ser tratado em outro artigo.

7. Fazendo uma análise histórica da Bossa Nova dentro do panorama da música popular urbana brasileira, Marcos Napolitano (1999, p.171) observa que, ao surgir por volta de 1959, os artífices da Bossa Nova herdaram “formulações estéticas e ideológicas socialmente enraizadas”, que se traduzia, por exemplo, “no reconhecimento do samba como música ‘nacional’, fazendo com que muitos deles se propusessem a renovar a expressão musical sem romper totalmente com a tradição.” Após a consagração do movimento em 1959 – 1960, a partir de 1961, setores da esquerda perceberam o potencial da Bossa Nova junto ao público estudantil e começaram a politizá-la. Tanto Carlos Lyra, compositor de Couro de gato, quanto Sérgio Ricardo fizeram parte dessa corrente “engajada” da Bossa Nova (NAPOLITANO, 1999).

8. Esse aspecto narrativo das canções será aproveitado por Glauber Rocha em seu filme da mesma época, Deus e o diabo na terra do sol (1964), com canções de voz e violão de Sérgio Ricardo extradiegéticas funcionando como um coro grego.

9. Usamos aqui e ao longo do artigo a palavra “cantarolar”, embora talvez o mais preciso fosse se referir à técnica jazzística do “scat singing”, que consiste em cantar improvisando, sem palavras ou com sílabas sem sentido lógico. Agradeço ao colega Alfredo Werney pela informação.

10. Chamamos a atenção de que a interpretação da criança não reforça o lado “raivoso” da revolta, mas sim uma certa altivez e aceitação do ocorrido.

11. Cíntia Onofre (2011) contabiliza, entre 20 incursões musicais do filme como um todo, 13 são da “Voz do morro” em diversas variações rítmicas e melódicas.

12. Por outro lado, Zé Keti era um músico que transitava em diversos meios, tendo sido convidado a participar do famoso show Opinião, no final de 1964, que reuniu tanto músicos populares mais tradicionais quanto artistas da futura Tropicália, como Maria Bethânia. Parte deste show aparece no filme O desafio (1965), de Paulo César Saraceni. 

13. Já havia nela canções bem diferentes do samba tradicional, embora tampouco sejam consideradas Bossa Nova. De todo modo, as canções do filme Orfeu Negro, principalmente “A felicidade” e “Manhã de carnaval”, foram bastante associadas ao surgimento da Bossa. Agradeço todas essas informações ao colega Alfredo Werney. 

 

Referências

ANDRADE, Gustavo Menezes de. As populações marginalizadas nos filmes de Sérgio Ricardo. Monografia (Graduação em Comunicação Social – Audiovisual) – Universidade de Brasília, 2017.

BUONICORI, Augusto. Entrevista de Augusto Buonicore com Sérgio Ricardo. Revista Vermelho. Disponível em https://vermelho.org.br/2020/07/25/entrevista-de-augusto-buonicore-com-sergio-ricardo/ Acesso: 2 out. 2020.

FABRIS, Mariarosaria. A questão realista no cinema brasileiro: aportes neo-realistas. ALCEU, v. 8, n. 15, p. 82 – 94, 2007.

GUERRINI JÚNIOR, Irineu. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009.

NAPOLITANO, Marcos. Do sarau ao comício: inovação musical no Brasil (1959 – 63). REVISTA USP (São Paulo), n. 41, p. 168-187, março/maio 1999.

ONOFRE, Cíntia Campolino de. Nas trilhas de Radamés: a contribuição musical de Radamés Gnattali para o cinema brasileiro. Tese (Doutorado em Multimeios) – Universidade Estadual de Campinas, 2011.

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Luíza Alvim é d
outora em Comunicação e Cultura (Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Brasil) e em Música (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil). Durante o primeiro PhD, estágio de doutorado de um ano na University Paris 3, França, sob supervisão de Michel Chion. Mestre em Letras (Universidade Federal Fluminense, UFF, Brasil) e Bacharel em Comunicação - Cinema e Jornalismo (UFF, Brasil). Luíza Alvim foi professora do Departamento de Metodologia da Faculdade de Comunicação da UFRJ e também lecionou História do Cinema no Departamento de Cinema e Audiovisual da UFF. Atualmente é Pós-Doutoranda no Departamento de Música da UFRJ. Desde o seu primeiro doutoramento, tem pesquisado música e som no cinema e tem muitas publicações na área, como o livro “A música no cinema de Robert Bresson” (“A música no cinema de Robert Bresson”). Em seu projeto atual, ela pesquisa o uso de músicas preexistentes no Cinema Novo brasileiro.


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