Tristeza mora na favela
Às vezes ela sai por aí
Felicidade então
Que era saudade sorri
Brinca um pouquinho
Enquanto a tristeza não vem
(versos da canção “Enquanto a tristeza não vem”, de Sérgio Ricardo)
“Esse mundo é meu” é uma das canções mais célebres do repertório de Sérgio Ricardo. Composta na primeira metade dos anos 1960, em parceria com o cineasta Ruy Guerra, sua letra é um chamamento à luta em prol da dignidade humana. Em um contexto histórico atravessado pelo entusiasmo utópico, no qual o imaginário da revolução política impregnava organicamente o campo cultural brasileiro, “Esse mundo é meu” surgiu como música a traduzir um espírito crescente de rebeldia contra as estruturas sociais de dominação. Por meio da intensidade sonora do samba, com um ritmo a contagiar corpos e mentes, a canção de Sérgio Ricardo procurava enunciar a dimensão épica de um povo que acima de tudo deseja alcançar sua libertação. À maneira de um ensinamento político, os versos iniciais da música denunciam a violência decorrente de uma sociedade marcada pela deformação autoritária. Um eu-lírico sem nome, expressão da voz popular historicamente massacrada, desvela a situação trágica de seu existir: “Fui escravo no reino e sou / escravo no mundo em que estou / mas acorrentado ninguém pode amar”. Na condição de prisioneiro, submisso às estruturas hierárquicas de poder, o ser humano não encontra a possibilidade de ser feliz. Os apelos lançados pelo eu-lírico às entidades mágicas, com suas “mandingas” e seus pedidos de ajuda ao orixá da guerra Ogum, não resultam na emancipação desejada. Ainda que seja parte essencial da identidade do país, sobretudo da cultura popular, a religiosidade afro-brasileira falha como instrumento transformador das desordens do mundo.
Diante do espiritual que não resolve os dilemas, face ao “santo guerreiro da floresta / (...) [que] não vem”, apresenta-se para o eu-lírico um único caminho possível de combate à opressão: é preciso que os homens e as mulheres tomem a história em suas mãos, que assumam as rédeas do futuro, tornando-se sujeitos ativos de sua própria libertação. Conforme anuncia a letra da canção, faz-se necessário “brigar”. Sendo verdadeira a afirmação de que o mundo pertence ao ser humano, como repete inúmeras vezes o refrão da música, então cabe unicamente a ele transformá-lo. Na força de seu gesto sonoro, de seu chamamento à rebeldia, a canção de Sérgio Ricardo estrutura-se como pedagogia revolucionária. Ao expor a violência encontrada na sociedade, a partir de um diálogo com a herança musical de origem popular, a letra de “Esse mundo é meu” evidencia que a resistência política encontra-se sobretudo nas mãos e nas ações da própria classe oprimida. Nos poucos versos presentes na canção, a aposta reside no ser humano, e não no sobrenatural, como força motriz para a transformação da existência.
Artista e intelectual engajado, pertencente a uma geração que assumiu o fazer criativo como compromisso incontornável de luta, Sérgio Ricardo imprimiu em “Esse mundo é meu” uma filosofia humanista que conduziria seus passos criativos por toda a vida. Tornando-se uma espécie de manifesto, gravada por nomes como Nara Leão e Elis Regina, sua canção contém a essência de um projeto artístico que ele manteria firme até 2020, quando faleceu aos 88 anos de idade. Em “Esse mundo é meu” encontra-se a síntese de uma postura política, de filiação marxista, que marcaria estruturalmente as obras realizadas durante décadas por Sérgio Ricardo. Em sua arte múltipla – músicas, filmes e pinturas –, as leituras críticas do país, assim como as práticas estéticas, quase sempre foram formuladas a partir de aproximações criativas e poéticas com a classe popular. Posicionando a riqueza cultural, o lirismo e os dilemas do povo no centro de suas criações, no que acreditava ser um compromisso do intelectual militante com os oprimidos, o artista retornou constantemente à sua pedagogia revolucionária fundacional, reelaborando a aposta na ação humana como caminho possível para a felicidade. Nas obras de Sérgio Ricardo, numa roda viva sem fim, o popular ressurge continuamente como tragédia e libertação. Se por um lado o seu existir é precário, marcado pela miséria e pela violência, por outro é nele que está contida a energia capaz de operar transformações reais no mundo. É na oscilação entre morte e vida, entre a dominação social que aprisiona e o desejo de romper com as amarras, que reside a essência criativa do artista. Um projeto de arte que expõe (e explica) criticamente a opressão, mas que também almeja (e manifesta) a sua superação.
Embora a pedagogia revolucionária de Sérgio Ricardo se apresente recorrentemente em suas canções, a exemplo de músicas como “Enquanto a tristeza não vem” e “A fábrica”, parece-me que foi na produção cinematográfica, sobretudo naquela de gênero ficcional, que o artista conseguiu exercitar com maior plenitude a didática por trás de seu compromisso com a classe popular. Na realização de filmes, em obras nas quais utilizou as próprias canções como comentários líricos e políticos, o artista encontrou um lugar de criação que lhe permitiu ampliar as leituras em torno dos dramas enfrentados pelos oprimidos. Os dilemas e os desejos do povo, presentes nos versos das músicas, aprofundaram-se como dramaturgia crítica em sua criação cinematográfica. Tal adensamento narrativo, construído no encontro entre sonoridade engajada e imagens da tragédia social, já aparecia no primeiro filme dirigido por Sérgio Ricardo. Sob influência direta do cinema realista de Nelson Pereira dos Santos, especialmente de Rio, quarenta graus (1954) e Rio, Zona Norte (1957), o curta-metragem Menino da calça branca (1961) gira em torno de uma criança favelada que vive sob condições extremas de penúria. Em um espaço geográfico marginalizado, morro carioca onde não existe sequer saneamento básico, um garoto sem nome, que mora com a mãe em um pequeno barraco de madeira, sonha em conseguir para si uma bonita calça branca. Em um país de herança autoritária como o Brasil, no qual o valor do cidadão é medido pelo tamanho de suas posses materiais, o anseio do personagem nada tem de diminuto. Obter uma nova roupa, a mesma utilizada por um homem galanteador que no filme passeia em locais arborizados do Rio de Janeiro, vai além da simples vaidade. No imaginário do menino, seu objeto de desejo talvez permita alcançar um respeito e um lugar no mundo que não lhe são oferecidos graças à sua condição miserável.
Em Menino da calça branca, manifestam-se aspectos típicos do cinema de Sérgio Ricardo. A partir de uma mise en scène tributária do neorrealismo, em que a narrativa se desenvolve nas locações da real exclusão social, o filme apresenta não apenas os efeitos perversos da opressão sobre a classe popular, mas também uma dimensão lírica na qual o vislumbre de felicidade encontra-se no sonho infantil por uma nova roupa. Presentes no curta-metragem como representação em torno do povo, como aprendizado sobre o Brasil segregacionista, o drama da miséria e o desejo de felicidade reapareceriam algum tempo depois na produção cinematográfica de Sérgio Ricardo, mais precisamente entre 1963 e 1964, quando o artista voltou à direção para realizar um novo filme. Naquele que seria o seu primeiro longa-metragem, no qual percebe-se uma clara convergência criativa com o movimento do Cinema Novo, o artista retornaria aos componentes centrais de sua pedagogia revolucionária, dessa vez conferindo-lhe maior contundência trágica. Contendo uma narrativa de chamamento à luta, de convocação do ser humano para a ruptura com os grilhões da história, não parece coincidência que o novo filme de Sérgio Ricardo tenha sido intitulado justamente Esse mundo é meu, mesmo nome da canção na qual ele manifestara os princípios gerais de sua filosofia política. Nesta obra realizada sob efeito da euforia utópica, ainda em um momento histórico no qual parecia possível um projeto de emancipação para o Brasil, música e cinema se unem como um ato de rebeldia contra o estado deletério das coisas.
No filme Esse mundo é meu, novamente a câmera de Sérgio Ricardo adentra o espaço geográfico da favela carioca, dessa vez para relatar duas narrativas que envolvem os dramas da classe popular. Por meio de tramas paralelas que nunca se cruzam, mas que se complementam como diagnóstico da miséria social, o longa-metragem desvela criticamente a tragédia cotidiana vivida pelo povo brasileiro. Em um dos enredos, o protagonismo pertence a Toninho. Rapaz negro que mora em um barraco depauperado, principal responsável pelo sustento da mãe e do padrasto adoecido, Toninho trabalha como engraxate na cidade do Rio de Janeiro. A despeito da vida difícil, a lhe impor duras limitações, o personagem é um sonhador. Do mesmo modo que a criança de Menino da calça branca, também vivendo uma situação de pobreza material, Toninho projeta sobre um objeto de consumo a possibilidade de ser feliz. Juntando dinheiro dia após dia, migalha por migalha, ele deseja comprar uma bicicleta para conseguir o amor de Zuleica, jovem que não se relaciona com rapazes que andam a pé. Garantia de status social para quem nada possui, uma simples bicicleta se transforma em epicentro dos anseios de ruptura. Enquanto engraxa sapatos, ajoelhado no chão em posição subalterna aos clientes, o personagem se perde em devaneios nos quais sonha estar sobre duas rodas, ao lado da pessoa amada. Na narrativa de Toninho, o desejo do popular emerge como um vir a ser, um vislumbre de felicidade para o futuro. Ainda que Esse mundo é meu possa ser criticado pela composição da personagem Zuleica como estereótipo da mulher fútil, em nenhum momento o filme tropeça em um moralismo político que considera menos importante os anseios particulares do povo. No longa-metragem de Sérgio Ricardo, a classe popular sonha com a revolução, mas também com a conquista de uma bicicleta.
E é no segundo enredo, de dimensões trágicas, que reside o desejo revolucionário. Diferentemente da narrativa de Toninho, na qual a felicidade ao lado da mulher amada surge como projeção, a história de Pedro começa atravessada pela alegria. Rapaz branco, operário em uma pequena metalurgia, o personagem comemora o início de sua vida conjugal ao lado de Luzia. Durante um passeio pelo Rio de Janeiro, no qual vão ao teatro, ao parque de diversões e à praia, os dois celebram o fato de que morarão juntos em um barraco localizado na favela. O clima de contentamento, no entanto, terá um curto tempo de duração. A despeito da paixão, o casal enfrenta severas dificuldades financeiras que culminarão em terríveis consequências. Sem expectativas de futuro, e diante do insucesso de Pedro em conseguir um aumento salarial com seu patrão, Luzia decide interromper uma gravidez recém-descoberta. Para a personagem, não há sentido em trazer para o mundo uma criança que passará fome e estará entregue aos desmandos do poder. Em meio a uma mise en scène que toma de empréstimo elementos estilísticos do gênero de terror, Luzia submete-se a um aborto ilegal, a uma operação de alto risco realizada dentro de um barraco sujo e insalubre. Perfurada por agulhas retorcidas de costura, sob uma tempestade violenta que desaba, a personagem agonizará até a morte. No filme Esse mundo é meu, a tragédia de Luzia sintetiza o esmagamento social enfrentado pela classe popular brasileira. Não fosse a situação de miséria, não fosse a pobreza imposta pelos poderosos, provavelmente ela estaria viva ao lado de seu filho. Escravo no mundo em que está, acorrentado pela opressão, o povo não encontra a possibilidade de ser feliz. Essa pedagogia política, essência da arte de Sérgio Ricardo, encontra-se, aliás, em várias passagens do longa-metragem. Presente em uma fala melancólica de Pedro, na qual a alegria do povo é comparada ao sabor efêmero de um algodão-doce, ela reaparece na sequência em que o casal anda em uma roda-gigante, momento no qual a diversão é atropelada pela tristeza entoada na música “A fábrica”. No segundo enredo de Esse mundo é meu, o recado é evidente: em uma sociedade injusta e mal dividida socialmente, o povo encontra-se mais próximo da tragédia do que da felicidade.
Por conta disso, a ruptura faz-se necessária. Em Esse mundo é meu, a morte de Luzia não provoca apenas um aprendizado crítico sobre os efeitos terríveis da opressão, mas é também a gota d’água que impulsiona Pedro à revolta contra a classe patronal. Ainda que o chamamento à luta já viesse se anunciando no decorrer do filme, sobretudo quando a narrativa é invadida por fragmentos da peça teatral As aventuras de Ripió Lacraia (1963), o ato efetivo de insurreição somente se materializará após consumar-se o desaparecimento de Luzia. Na pedagogia revolucionária de Sérgio Ricardo, tragédia popular e resistência política coexistem, a primeira tornando-se causa para a emergência da segunda. A sequência que encerra Esse mundo é meu, um virtuoso rodopio da câmera a capturar a alegria de Toninho nos braços de Zuleica, parece indicar uma possível restituição da felicidade, uma alegoria de futuro utópico, caso as mãos dos operários, convocadas por Pedro, realmente tomem posse da história e a conduzam a novas perspectivas de vida. Entre os anos de 1963 e 1964, ao imprimir em seu longa-metragem um gesto revolucionário, conduzido pelo personagem que ele mesmo interpreta, Sérgio Ricardo não se encontrava sozinho no panorama cinematográfico brasileiro. Essa revolta que emerge da tragédia, consciência ideológica adquirida em decorrência das dores do mundo, é tema recorrente em filmes como Barravento (1962), de Glauber Rocha, Pedreira de São Diogo (1962), de Leon Hirszman, Ganga Zumba (1963-64), de Carlos Diegues, ou Os fuzis (1963), de Ruy Guerra. Embora Sérgio Ricardo não seja considerado pela historiografia um integrante do Cinema Novo, talvez por sua trajetória central localizar-se no campo musical, Esse mundo é meu dialoga intensamente com o universo político e estilístico desse movimento cinematográfico. Vale lembrar que em 1964 ele comporia com Glauber Rocha a música-tema para o filme Deus e o diabo na terra do sol, canção na qual verifica-se mais um retorno à pedagogia fundacional, à chave do aprendizado crítico para a mudança da realidade social. Conforme enuncia a letra da música: se bem apreendida a lição de que o mundo anda errado, de que a história pertence ao homem, o próximo passo será a revolta que fará o “sertão virar mar”, que fará a aridez do existir transformar-se finalmente em utopia.
A despeito de todos os anseios impressos nos primeiros filmes do Cinema Novo, incluindo aqueles realizados por Sérgio Ricardo, a transformação política não se concretizaria na realidade histórica brasileira. No avesso completo da utopia desejada, no reverso do sonho, o país veria a implantação de uma ditadura civil-militar a partir de abril de 1964, uma ocupação de poder pela extrema direita que duraria pelo menos até o ano de 1985. Representada nas telas como agente revolucionário, por meio de um imaginário artístico romântico, a classe popular não ofereceria resistência ao golpe de Estado que implodiu os frágeis alicerces da democracia brasileira. Em um contexto histórico de supressão da liberdade, de pulverização dos projetos ideológicos da esquerda, os realizadores do Cinema Novo descobririam a enorme distância entre a realidade social e as imagens utópicas que haviam povoado seus filmes. Em parte, aquilo que servira de essência aos seus processos criativos mostrava-se agora uma ilusão. Por meio da autocrítica, com certa dose de amargura, os cineastas perceberiam que suas leituras em torno do povo, mesmo constituindo denúncias à miséria, pouco condiziam com a condição política real da classe oprimida. Sem escapar ao populismo e à euforia revolucionária, eles haviam projetado nas telas um popular mais atinado com seus desejos de engajamento do que com as complexidades e contradições do mundo. Diante de tal fratura, o Cinema Novo, na segunda metade da década de 1960, modificaria seu eixo temático. Nos primeiros anos da ditadura, retirando do centro das obras as representações do povo, os realizadores se voltariam principalmente para narrativas sobre o fracasso de seu projeto político, sobre a melancolia dos militantes e intelectuais de esquerda em tempos autoritários, como é perceptível nos filmes O desafio (1965), de Paulo César Saraceni, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, e O bravo guerreiro (1968), de Gustavo Dahl. Curiosamente, mesmo influenciado de modo direto pelo Cinema Novo, Sérgio Ricardo não acompanharia tal deslocamento temático, mantendo-se firme em seu compromisso artístico com a classe popular. Ainda que seu cinema nunca mais retornasse ao triunfalismo revolucionário anterior, agora abandonado diante das perversidades da história, ele permaneceria fiel à pedagogia política na qual o povo, em sua condição trágica, emerge nas telas como força de ruptura contra a opressão. Embora exista uma mudança de tom nos próximos filmes de Sérgio Ricardo, um afastar-se do romantismo utópico que entrou em colapso, ao mesmo tempo se mantém vivo o compromisso do artista com a classe oprimida, com a aposta de que nela reside uma possível potência de transformação.
Tal permanência se encontra presente em Juliana do amor perdido, filme que Sérgio Ricardo realizou no ano de 1970. Neste que é seu segundo longa-metragem, o artista deixa para trás o espaço geográfico da favela, deslocando suas câmeras rumo ao mar. No interior de uma ilha apartada do mundo, onde a pesca é meio de subsistência para uma comunidade praieira, a classe popular surge nos planos iniciais da narrativa envolta pela beleza plástica de um ritual religioso. A partir de uma cerimônia mística em louvor às divindades, composta por cânticos, batuques e gestos de adoração, a população local se reúne para retirar do mar os peixes que lhe servirão de alimento e de mercadoria. Atravessado por uma tonalidade sublime, decorrente da imponência estética impressa na mise en scène, o ritual confere destaque à personagem que se tornará protagonista do filme. Jovem dotada de grande formosura, elemento de mediação com o plano místico, Juliana é considerada pelo povoado como encarnação máxima da santidade. O clima inicial de maravilhamento, no entanto, terá curta duração no longa-metragem de Sérgio Ricardo. Por trás da beleza existente no cerimonial, beleza do culto popular, desvela-se uma terrível violência que contamina a vida dos moradores da ilha. Como no filme Barravento (1962), de Glauber Rocha, a dimensão religiosa serve como mecanismo de poder para a alienação do povo e a manutenção de hierarquias sociais de opressão.
Aquilo que em princípio deveria ser sinônimo de proteção e dádiva, a suposta divindade existente no corpo de Juliana, apresenta-se no enredo dramático como um instrumento político para a contenção das insatisfações populares. Alimentando a fé e a devoção em torno da jovem, cuja santidade afinal revela-se falsa, seu pai exerce controle sobre a comunidade pesqueira, garantindo benefícios por meio de acordos espúrios com um norte-americano dono da ilha. Diferentemente de Esse mundo é meu, a classe popular surge em Juliana do amor perdido não apenas como vítima de uma sociedade injusta, mas também como agente de dominação que se volta contra os próprios irmãos. Em um contexto histórico marcado pelo fracasso utópico, tal qual faria Ruy Guerra no filme A queda (1976), tornam-se mais complexas as representações do povo, agora fraturado entre o sofrimento e o servilismo aos poderosos. Em meio à roda-viva do mundo, na qual o povoado da ilha se mantém entregue à alienação, quem mais sofre é Juliana. Consciente de sua falsidade religiosa, coagida a transformar-se em objeto de culto, a personagem deseja romper com o aprisionamento imposto pela existência, não aceitando continuar como joguete nas mãos do próprio pai. Nos anseios de Juliana reside a pedagogia política fundacional de Sérgio Ricardo. Acorrentada pela estrutura autoritária do mundo, escrava do reino da magia e dos homens, a personagem não poderá encontrar a felicidade.
Para Juliana, a chance de sobrepujar o aprisionamento nascerá a partir do encontro com um maquinista de trem, homem que controla o meio de locomoção necessário para que ela abandone um universo tomado por violências e opressões. A paixão que ela passa a sentir por Faísca, cujo apelido guarda em si a potência da ruptura, origina-se não apenas como desejo sexual, mas sobretudo como expectativa de um futuro no qual ela consiga destituir-se do enorme peso de ser uma falsa santa. No decorrer da fuga que empreende ao lado do novo parceiro, entre brincadeiras e gracejos eróticos, Juliana finalmente encontrará a chance de experimentar uma vida livre das amarras sociais existentes na comunidade pesqueira. Como os protagonistas de Esse mundo é meu, o Toninho que dança ao lado de Zuleica ou o Pedro que se diverte com Luzia em um parque de diversões, Juliana vê a materialização da alegria quando distante das maquinarias autoritárias da sociedade. Não fossem as estruturas de poder, causadoras dos descompassos do mundo, a classe popular poderia ser feliz. Em um momento de grande intensidade lírica, quando Faísca e Juliana encontram-se sozinhos em uma praia deserta, o mar que antes rebentava como espaço de dominação, mar no qual a personagem precisava travestir-se de santa trapaceira, ressurge como lugar metafórico de prazer e de ruptura. Ainda que as águas não mais comportem a alegoria revolucionária presente em Deus e o diabo na terra do sol (1964), no qual emergiam como símbolo épico de todo um povo em emancipação, elas reencantam-se na narrativa fílmica de Sérgio Ricardo, surgindo como espaço de acolhimento para um feminino em busca de libertação. Se o tempo histórico ainda fosse o do romantismo utópico pré-1964, se o país não estivesse refém de uma ditadura militar em 1970, talvez Juliana do amor perdido se encerrasse aqui. Talvez, como na imagem final de Esse mundo é meu, a narrativa se concluiria com Juliana e Faísca na plenitude da felicidade, com uma mise en scène lírica a evocar a expectativa de um futuro libertário.
Tal perspectiva, todavia, não está reservada ao casal. Após uma série de reviravoltas narrativas, Juliana será novamente aprisionada pela comunidade pesqueira, cuja alienação transforma-se em violência desmedida contra a “santa” que deveria garantir a proteção do povoado e não abandoná-lo. Tratada como traidora, encarcerada pela crendice religiosa fascista, a personagem enfrentará duras agressões impostas ao seu corpo. Durante uma nova tentativa de fuga, pois o desejo de ruptura permanece aceso, Juliana encontrará seu destino final. Em desespero, perseguida pelos homens e mulheres da comunidade, ela será atropelada pelo trem guiado por Faísca, morta justamente pelo meio de transporte que deveria oferecer-lhe os caminhos para uma possível redenção. Sob efeito de um contexto histórico ditatorial, de acirramento das contradições sociais brasileiras, o cinema de Sérgio Ricardo não mais encontra a disposição anterior para idealizar futuros utópicos. Em tempos autoritários e militarizados, o artista atualiza a pedagogia política presente na essência de seu trabalho criativo. Como parte da obra de Sérgio Ricardo, Juliana do amor perdido resulta em um filme de aprendizado em torno dos mecanismos de opressão que incidem sobre a existência da classe popular. Mais um exemplar do compromisso ideológico com os oprimidos, o longa-metragem ressalta a energia revolucionária que emana do povo, a vitalidade que o leva a tentativas persistentes de ruptura contra o sistema de dominação. No entanto, ainda que se materialize a felicidade, emerge no filme uma dimensão trágica avassaladora, uma destruição reforçada por preconceitos, interesses econômicos e hierarquias de poder. A vida e a morte do popular, seu sofrimento e a força de sua resistência, elementos criativos fundacionais da arte de Sérgio Ricardo, ressurgem na narrativa de Juliana do amor perdido. Atualizada, a pedagogia política ensina que os tempos são trágicos, mas que o povo, como classe social, prossegue contendo a potência desejante da ruptura.
E são justamente a vida e a morte do povo que reemergem, com grande intensidade poética, no terceiro longa-metragem realizado por Sérgio Ricardo. A partir de um roteiro escrito originalmente em 1968, mas levado às telas apenas no ano de 1974, A noite do espantalho desloca o processo criativo do cineasta em direção a outro espaço geográfico de exclusão, rumo ao sertão nordestino onde a classe popular enfrenta uma vida atravessada pela fome e pela submissão às forças autoritárias do coronelismo. Se até então a cinematografia de Sérgio Ricardo havia se dedicado a representações em torno do mar e da favela urbana, localizando nestes territórios a oscilação entre a tragédia e a resistência dos oprimidos, agora as suas câmeras se voltam para uma das regiões mais empobrecidas do país, cenário de grande precariedade material também presente em filmes centrais do Cinema Novo como Vidas Secas (1963) e Os fuzis (1963). Dando continuidade ao projeto artístico do cineasta, expandindo-o em direção aos dilemas encontrados no interior do Nordeste, A noite do espantalho recoloca em cena, como novo ato de engajamento, uma pedagogia política mediada pela condição existencial miserável do povo brasileiro.
Deslocando-se rumo ao sertão, escolha nada fortuita para um artista de cerne militante, Sérgio Ricardo elegeria como cenário para seu terceiro longa-metragem a cidade de Nova Jerusalém, localizada no estado nordestino de Pernambuco. Cidade construída artificialmente no ano de 1968, com edificações que tentam imitar a arquitetura da antiga Jerusalém descrita em textos bíblicos, a locação onde ocorre a narrativa de A noite do espantalho tornou-se conhecida, no Brasil, como espaço de celebração católica no qual realizam-se encenações recorrentes de A paixão de Cristo. Considerada o maior teatro a céu aberto do mundo, um ícone do poder cristão na América Latina, com o passar do tempo Nova Jerusalém foi se transformando em território de peregrinação religiosa no qual, anualmente, centenas de atores e fieis se reúnem com o objetivo de encenar o sofrimento enfrentado por Jesus Cristo em seus últimos momentos de vida. No entanto, ao situar seu filme nesse lugar simbólico, de convivência íntima entre o kitsch e o sagrado, de modo algum Sérgio Ricardo encontrava-se mobilizado por qualquer forma de respeito à devoção católica. Mantendo-se firme em sua disposição crítica contra a alienação religiosa, posicionamento já presente em Juliana do amor perdido, o artista toma de empréstimo uma localidade impregnada pela fé não com o intuito de promover celebrações, mas sim com a perspectiva de operar rupturas políticas em um espaço considerado socialmente como símbolo de devoção. Ao filmar em Nova Jerusalém, no mesmo território em que a comoção emocional advém da via crucis e da ressurreição espiritual, o cineasta refuta uma reencenação dos dias derradeiros de Cristo, substituindo-a por outra tragédia que nada tem a ver com as dimensões ascéticas do catolicismo. Ao se apropriar da cidade santificada, de suas ruas e edificações, o artista destitui o componente originário cristão, colocando em seu lugar uma angústia diretamente relacionada à realidade social do país. Em A noite do espantalho, num movimento de subversão materialista, Jesus é retirado de cena. Contrariando expectativas religiosas, Nova Jerusalém transforma-se em palco de outra paixão, aquela que envolve a angústia e o sofrimento da classe popular brasileira. Na teatralidade política de Sérgio Ricardo, em seu cinema de engajamento, o que se encontra em cartaz é A Paixão do Povo Sertanejo.
No filme A noite do espantalho, obra mais ousada do cinema de Sérgio Ricardo, o relato sobre a paixão que envolve os oprimidos é construído por meio de uma experiência estética dotada de grande inventividade. Retomando aquilo que se encontra na essência de seu trabalho criativo, um projeto estilístico composto a partir de convergências com o universo da arte popular, em seu terceiro longa-metragem o cineasta procura estabelecer um encontro poético com a musicalidade oriunda do cancioneiro nordestino. Se antes, no filme Esse mundo é meu, o samba emergia como expressão cultural relacionada aos dilemas do Rio de Janeiro, em diálogo com a música existente nos morros e favelas, agora, em sua nova película, Sérgio Ricardo busca aproximações criativas com raízes sonoras vinculadas à identidade sertaneja. O duelo cantado, a poesia de cordel, a dança de roda e o canto de trabalho, entre outras matrizes rítmicas de origem nordestina, atravessam a totalidade narrativa de A noite de espantalho como uma rapsódia operística que desvela as dimensões líricas, a tragédia e os atos de sobrevivência pertencentes à classe popular. Na forma de uma paixão do povo, a pedagogia política de Sérgio Ricardo, fundamento de seu fazer cinematográfico, encontra-se agora investida por um cancioneiro que se transforma em fio condutor do aprendizado crítico sobre as estruturas de opressão existentes no sertão brasileiro.
Do início ao fim, por meio de diálogos cantados, o filme toma de empréstimo tradições da musicalidade popular, modernizando-as com o intuito de narrar as desventuras que envolvem os oprimidos no interior da região nordestina. Ao modo de uma ópera do povo, de um musical cinematográfico acerca das adversidades do mundo, o longa-metragem de Sérgio Ricardo coloca em cena a figura de um cantador, enigmático espantalho que ali se encontra para contar um episódio de sofrimento e de resistência ocorrido dentro de um pequeno povoado sertanejo. Interpretado por Alceu Valença, que futuramente se tornaria compositor e cantor de renome nacional, o espantalho atravessa o filme como figura que detém a memória dos infortúnios populares, como alguém que deseja partilhar com os espectadores seu conhecimento acerca da condição vivida pela classe miserável. Do mesmo modo que em Deus e o diabo na terra do sol (1964), cumprindo uma função poético-pedagógica, o cantador aqui se encontra para propiciar um aprendizado político sobre a precariedade da existência. Ao anunciar que sua história é fruto da verdade e da mentira, de um veio ficcional que provém diretamente da realidade, o espantalho nos convida à conscientização sobre o mundo, esperando que talvez derive daí alguma forma de “uso e [de] bom proveito”. É da voz desse contador de causos, dono de grande sabedoria, que brota a narrativa vinculada à paixão do povo sertanejo.
Em A noite do espantalho, o relato apresentado pelo cantador escancara as relações autoritárias de poder existentes no Nordeste brasileiro. No interior de um povoado sertanejo, em uma região severamente atingida pelo clima seco, a classe popular vive seus dias sob o agressivo domínio da elite coronelista. Rico proprietário de terras, símbolo máximo do despotismo latifundiário, o coronel Fragoso exerce desmedido controle sobre a população local, obrigando-a a viver em um estado opressivo de quase escravidão. Submetidos aos desmandos do poder, aprisionados pela servidão que lhes é imposta, os oprimidos encontram-se envoltos em um sofrimento marcado pela fome e pela miséria material. Nesse universo fraturado pela divisão social, em que a violência dos jagunços impõe a autoridade coronelista, o povo busca no misticismo religioso um refúgio para as agruras do cotidiano. No entanto, como antes no filme Juliana do amor perdido, a salvação pela fé apresenta-se como algo ilusório. A despeito das promessas feitas por um líder messiânico, por essa figura tão recorrente no imaginário sertanejo, o milagre da redenção falha. Com grande frustração, o povo assiste ao naufrágio de suas expectativas quando a chuva transformadora não chega, angustiando-se diante do fracasso religioso que pressagiava o fim da miséria por meio das águas vindas do céu.
Face ao espiritual que não soluciona as contradições do mundo, adquirindo consciência política acerca de sua condição miserável, o povoado buscará a construção de um ato de resistência contra o coronel Fragoso. Como é típico no cinema de Sérgio Ricardo, na essência de sua pedagogia crítica, a dimensão trágica do cotidiano impulsiona os oprimidos à tentativa de ruptura contra o sistema de dominação. Mais uma vez, manifesta-se o aprendizado fundacional impresso na canção “Esse mundo é meu”. Para ser feliz, para alcançar sua emancipação, a classe popular precisa tomar a história em suas mãos, sobrepujando formas de alienação que impedem ações políticas transformadoras. A potência advinda dos oprimidos, entretanto, também falhará como mecanismo de enfrentamento contra os abusos do poder coronelista. Ainda que resida no povo uma força política que nunca se apaga, um desejo de liberdade que mobiliza seu existir, a tentativa de resistência será massacrada na narrativa de A noite do espantalho. Diante das insurgências advindas dos miseráveis, que se recusam a deixar suas terras, o coronel Fragoso ordena o aniquilamento dos revoltosos. Sob o olhar vigilante de um dragão, símbolo do colonialismo capitalista em terras brasileiras, um grupo de jagunços extermina os sertanejos, dando fim à rebeldia que vinha se erguendo.
Como nos demais filmes de Sérgio Ricardo, em A noite do espantalho a felicidade popular também se materializa nos momentos em que as forças autoritárias encontram-se distantes. Novamente, quando desenha-se a expectativa de ruptura com o domínio da opressão, um lirismo atravessa o tecido dramático como manifestação da alegria proveniente dos oprimidos. Sobretudo nas sequências em que os sertanejos contrariam o poder local, propondo a construção de uma comunidade autônoma ao sistema coronelista, o contentamento emerge na forma de uma potência libertária que emana diretamente do povo. Em A noite do espantalho, Sérgio Ricardo coloca em cena as imagens utópicas mais belas de sua cinematografia. Tal materialização da felicidade evidencia-se, em especial, nos momentos em que o povoado se transforma em coletividade a erguer um vilarejo em resistência ao coronel. A partir de uma mise en scène documentarizante, acompanhada por uma música de exaltação à comunhão popular, os sertanejos somam seus braços e mãos, coletivizam seus instrumentos de trabalho, com o intuito de construir, em sistema de mutirão, as moradias nas quais pretendem viver. Do barro remexido, da madeira cortada e das folhas de árvores edifica-se o projeto de um novo lar. Enquanto se desenvolve o mutirão, algo singular ocorre. Pela única vez no cinema ficcional de Sérgio Ricardo, a equipe de filmagem manifesta-se em cena, capturando com seus microfones e câmeras o agir libertário do povo. Num grande ato comunal, as mãos que edificam as casas e aquelas que registram o mundo compartilham a alegria de um viver sem amarras. A potência utópica emerge na cena ficcional, mas também nos bastidores da filmagem, congregando a criação artística com a criação advinda do popular. A mensagem, posta nas entrelinhas do filme, parece clara: não fossem as estruturas de poder, esta seria a vida possível. Reside, nessas imagens de plenitude, a aposta existencial do artista. Infelizmente, como antes em Juliana do amor perdido, a reação autoritária soterra o vislumbre de um futuro possível. Na forma de uma paixão musical, a pedagogia política de Sérgio Ricardo manifesta-se uma vez mais, traçando o aprendizado crítico acerca do sofrimento do mundo.
Em A noite do espantalho, no entanto, a pedagogia política adquire um adensamento referente às leituras sobre a condição autoritária encontrada na sociedade brasileira. No terceiro longa-metragem de Sérgio Ricardo, os mecanismos de opressão não se materializam em cena unicamente a partir das ações violentas oriundas de personagens vilanescos como o coronel Fragoso ou o dragão colonizador capitalista. No filme, por meio de uma abordagem mais complexa acerca das (de)formações autoritárias do país, o coronelismo nordestino emerge como dimensão estrutural capaz de corromper, inclusive, o espírito da própria classe popular. Distante da pureza revolucionária que residia em Esse mundo é meu, no qual o povo era representado exclusivamente como vítima da sociedade, verifica-se no filme A noite do espantalho um esforço de Sérgio Ricardo em evidenciar que os sertanejos, em meio ao miserabilismo, encontram-se reféns de um sistema de dominação que recorrentemente os transforma em instrumentos de violência a serviço da elite econômica. Emerge no tecido dramático, como resultado dos descompassos estruturais do mundo, um estilhaçamento da classe popular.
No longa-metragem, o protagonista da paixão cantada pelo espantalho é um homem de origem popular que se encontra fraturado entre duas personalidades distintas. Por um lado, em meio às desorientações que o atravessam, ele surge em cena como o vaqueiro Zé Tulão. Interpretado pelo ator Gilson Moura, Tulão transforma-se na principal liderança política que estimula o povoado à resistência. Dono de grande sabedoria, detentor de consciência sobre o mundo, ele partilha seu conhecimento crítico com os demais sertanejos, impulsionando-os a tomar posse das terras do coronel como ato de rebeldia contra os mecanismos de opressão. Por outro lado, tornando-se a face sombria de um mesmo homem, o protagonista de A noite do espantalho também se materializa como o jagunço Zé do Cão. Agora interpretado por José Pimentel, Zé do Cão carrega a sina da morte, representando a corrupção coronelista que leva a classe popular a converter-se em arma assassina nas mãos dos poderosos. Em sua encarnação jagunça, ele lidera o genocídio que extermina o povoado revoltoso. Fraturado em dois, atravessado pela instabilidade existencial, o protagonista do filme existe ao mesmo tempo como personalidade das luzes e das trevas. Metáfora de um povo aprisionado pelo domínio coronelista, a oscilar entre o desejo libertário e o servilismo ao poder, ele traduz os efeitos complexos de uma sociedade pervertida pelo autoritarismo. Ainda que busque a ruptura como o vaqueiro Zé Tulão, resguardando a potência transformadora da classe popular, o personagem não consegue escapar da contaminação autoritária, convertendo-se também no jagunço Zé do Cão, assassino dos próprios irmãos. A tormenta vivida pelo protagonista só findará com sua morte, quando, para regozijo do coronel Fragoso, uma personalidade acaba anulando a existência da outra. Para Maria do Grotão, mulher apaixonada pelas duas identidades de um homem só, resta o luto por aquele que carregou em vida a cruz do estilhaçamento. Em A noite do espantalho, a paixão sertaneja dota de maior complexidade a pedagogia política de Sérgio Ricardo. O aprisionamento do popular, que lhe impede a felicidade, é mais perverso do que ditam as aparências, eis o ensinamento transmitido pelo filme. O sofrimento não se origina apenas da fome, da precariedade material ou da tragédia associada à morte. Reside, também, no sistema opressivo que contamina a classe popular, fazendo-a existir ao mesmo tempo como vítima e algoz. Mesmo que a alegria se materialize provisoriamente em A noite do espantalho, como vislumbre lírico de um desejo utópico, a corrupção estrutural que incide sobre o povo aniquila possibilidades de redenção.
Em A noite do espantalho, a atualização da pedagogia política também reside no tratamento singular conferido por Sérgio Ricardo ao universo do sertão nordestino. Sem sombra de dúvidas, o longa-metragem apresenta um intenso diálogo com o imaginário cultural que se encontra presente em filmes da primeira fase do Cinema Novo ou em obras literárias escrita por autores como Jorge Amado, José Lins do Rêgo e Graciliano Ramos. A paixão cantada pelo espantalho remete diretamente às heranças narrativas, sobretudo de viés realista, que representaram a condição sertaneja por meio de elementos típicos como o misticismo religioso, o autoritarismo coronelista, a geografia da seca ou a situação miserável da classe popular. Tornando-se herdeira de tradições artísticas engajadas, voltadas para a denúncia das hierarquias de poder no Nordeste, A noite do espantalho dá prosseguimento a um imaginário ficcional que posicionou no centro de seus processos criativos o conflito de classes existente em uma das regiões mais empobrecidas do Brasil. A esta tradição, no entanto, Sérgio Ricardo acrescenta outros componentes formais que se voltam para a contemporaneidade dos anos 1970, dotando a tragédia sertaneja de uma atualidade política e histórica. Usufruindo de grande liberdade poética, fazendo valer sua ousadia, o cineasta adiciona à paixão nordestina elementos estéticos que remetem livremente às experiências contraculturais que vinham se desenvolvendo no país à revelia das perseguições e censuras da ditadura militar.
Ainda que Sérgio Ricardo nunca tenha sido um artista da contracultura - e defender tal vínculo seria um equívoco -, em A noite do espantalho ele procurou estabelecer pontos de contato com o experimentalismo advindo de vanguardas estéticas existente em sem seu tempo. Nesse sentido, a mise en scène do longa-metragem potencializa a pedagogia política do cineasta ao incorporar, ao imaginário tradicional sertanejo, formas fílmicas para além do realismo que habitualmente representou o sofrimento da classe popular nordestina. No filme, são inúmeros os momentos em que isso ocorre. Há a renovação do cancioneiro popular, a transformação dos jagunços em gangue de motoqueiros estilizados, a colocação em cena de um dragão colonizador tropicalista, a representação do espaço coronelista como aparato burocrático moderno ou a materialização de um palco de arena como lócus teatral onde Zé Tulão enfrenta seu duplo Zé do Cão. Atualizada em sua potência estética, a mise en scène de A noite do espantalho demonstra que a paixão sertaneja não é algo pertencente ao passado, mas sim uma angústia que prossegue existindo no tempo histórico da década de 1970. Trata-se, ao meu ver, de um esforço recorrente da criação cinematográfica de Sérgio Ricardo: evidenciar, a partir de sua pedagogia política, que a oscilação entre vida e morte, entre tragédia e resistência, permanece sendo a condição existencial dos oprimidos enquanto não for superado o autoritarismo da sociedade brasileira. Ainda que passem os anos, e que rebentem inúmeros atos de rebeldia, o sofrimento retorna como violência cíclica que incide sobre a vida do povo.
Nesse sentido, tendo em vista a permanência da paixão popular através dos tempos, como um problema ainda insolúvel no ano de 2020, não espanta que Sérgio Ricardo tenha retornado, em outros filmes, à pedagogia política que se encontra na essência de sua criação artística. Apesar da longa interrupção que atravessou o seu cinema ficcional, uma vez que o artista dirigiria um novo filme de enredo apenas na década de 2010, seu reencontro com a realização cinematográfica marcou, também, uma retomada das narrativas engajadas nas quais a representação do povo emerge como um trânsito entre a tragédia e a resistência. No curta-metragem Pé no chão (2014), mas sobretudo no longa Bandeira de retalhos (2018), obras em que Sérgio Ricardo volta a filmar nos morros cariocas, a pedagogia ressurge como ensinamento crítico sobre os desconcertos do Brasil contemporâneo. Novamente, como é perceptível na narrativa de Bandeira de retalhos, a potência lírica e política do povo, que se materializa como ato de resistência contra a desapropriação de uma favela, culmina em terrível tragédia que rememora o aprisionamento dos oprimidos às estruturas de poder existentes no país. A despeito da vitória contra a sanha patrimonialista, que expulsa os favelados de suas moradias em nome dos interesses imobiliários, a felicidade acaba fraturada pela violência autoritária que contamina a existência da classe popular.
Transitando entre o morro carioca, o mar e o sertão, espaços geográficos primordiais das obras realizadas pelo Cinema Novo, os filmes de Sérgio Ricardo manifestam a coerência de um artista engajado que manteve, até o fim da vida, um posicionamento ideológico contra os mecanismos de opressão presentes na sociedade brasileira. Mantendo-se firme dentro do ideário forjado entre os anos 1950 e 1960, do qual provém a ideia de que o artista revolucionário é aquele que se entrega a um pacto orgânico com a classe popular, Sérgio Ricardo lançou-se a um compromisso estético e filosófico marcado por leituras acerca dos dilemas enfrentados pelos oprimidos. Em seu cinema, representante do marxismo cultural, o povo sempre emergiu como coletividade em luta e em sofrimento, como materialização de um olhar militante que difundiu para o mundo representações específicas das fraturas nacionais. Em conformidade com seu pensamento político, em íntimo contato com o materialismo crítico, o artista imbuiu-se de um engajamento no qual o popular, manifestando-se nas telas, surgiu sobretudo como classe social. Aí residiu a essência criativa de Sérgio Ricardo, seu modo de agir e de estar no mundo. Sempre retornando à questão primordial de seu pensamento, à lição de que ''acorrentado ninguém pode amar'', o artista forjou uma pedagogia que acreditou capaz de conscientizar politicamente os espectadores. Ver seus filmes permite entrar em contato com um cinema que nunca abdicou do desejo utópico, ainda que inscrevesse (e evidenciasse) a tragédia presente no cotidiano brasileiro. Uma obra que se constituiu a partir do encontro entre um artista de herança marxista e a classe popular, cuja militância consolidou-se ao lado dos oprimidos, apostando em um pacto que permitisse, quem sabe, contribuir para a real transformação do mundo. Para Sérgio Ricardo, do início ao fim de sua trajetória, tal crença tornou-se o fundamento do processo artístico de criação. Nela, ele encontrou não somente os caminhos de seu cinema, mas uma filosofia humanista que mobilizou toda a sua existência. Não há vida possível, afirmaria o artista, sem um desejo incansável de resistência.
_
Reinaldo Cardenuto professor adjunto do departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF), Reinaldo Cardenuto é graduado em Jornalismo (PUC-SP) e em Ciências Sociais (FFLCH-USP). A sua investigação centra-se principalmente nas áreas da História do Cinema e da Dramaturgia.