Alguns nascem póstumos. O inventor extemporâneo inventa para o mundo um mundo fora do tempo, que ele mesmo desconhece. Experimenta. Usa espécie de intuição saudável. Se Deus é saúde – diria o poeta Max Martins – cigarro é dionisíaco, lembraria Sérgio Ricardo, em seu pequeno caos. Sem defumação não há dissolução. A fumaça encharca a espinha entranhada, limpa através de uma ardência quente e alaranjada. Gera por último um visgo que se cospe. Se Brasília pegasse fogo, igual ao Pantanal ou a Amazônia, toda essa patologia de pulsos catastróficos que se apoderou do Brasil hoje seria expurgada? Quase impossível palpitar. Para quem gosta de cigarro, criança e música - como Sérgio Ricardo – não há vida doente. Faria 90 anos escrevendo nas redes, compartilhando Dancinha do Fantoche[1]. Pois que haja festa! No céu ou no inferno, de manto azul ou gravata vermelha, à esquerda ou à direita de todo poderoso, com a pombinha branca girando ou falando a língua do urubu. Tanto faz, no estado em que estamos, ele convidará a todos os cânones, mesmo mantendo o distanciamento com máscara. Haja idade. O atrativo (para os amantes da segunda onda[2]) é que nessa festa não há hierarquia de redes, não há camarotes do Retire-se nem do Metaverso. É festa para humanistas confluentes no salão. Comes e bebes (incluso mingau) por conta de amigos anartistas provocadores de aflitivos exercícios de observação, diversos, entre eles a palitação de dentes e o cuspe à distância. Selfies liberadas apenas para cartunistas. Sérgio Ricardo será reconhecido com uma varinha de madeira nas mãos, em formato de mãozinha – talvez, quem sabe, ele a use para se coçar ou para reger a grande orquestra de compadres músicos. Como diria o filósofo alemão[3], a autoridade de um homem póstumo reside no fato de jamais ser compreendido.
Foto de Michel Schettert na casa de Sérgio
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1. Link para o vídeo: https://youtu.be/yVaNmC7PC-U
2. Enquanto a primeira onda ocorre para provocar a catástrofe, a segunda preserva a comoção de afetos. Tato Taborda em “Ressonâncias – vibrações por simpatia e frequências de insurgência”, Ed. UFRJ, 2021.
3. Friedrich Nietzsche em “Crepúsculo dos Ídolos”, Ed. Companhia de Bolso, 2017.
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Michel Schettert é autônomo e trabalha com análises rítmicas em artes fotocoreocinematográficas. Pesquisa o processo criativo no cinema